O
HOMEM QUE AMAVA OS CACHORROS
A história representada e
a história escrita ainda correm por linhas paralelas, mas estão tendendo a
juntar-se. (Edmund Wilson, in Rumo à
Estação Finlândia)
Liev Davidovitch
Bronstein, conhecido como Leon Trótski, foi, simultaneamente, profeta da
revolução russa e poeta do socialismo. Com uma biografia repleta de aventuras e
selvagerias, ainda é uma das figuras emblemáticas da história contemporânea –
setenta e quatro anos após sua trágica morte, na Cidade do México. Sobrevivente
dos horrores do cárcere czarista, amargou o exílio e a pobreza, lutou pela
construção de uma sociedade igualitária mundial. Em um dos momentos cruciais da
história russa, quando Vladimir Ilyitch Uliánov (Lenin), em 1918, solicitou sua
ajuda, organizou o Exército Vermelho. Sem qualquer tipo de crise de consciência
ou escrúpulos humanitários, destruiu o Exército Branco e estruturou as bases do
futuro Estado Soviético. Como escreveu o poeta Paulo Leminski, na biografia que
escreveu sobre Liev Davidovitch, em
Trótski, a revolução vai ser uma paixão intelectual, uma certeza lógica, uma
convicção feita de ferro em brasa.
Por diversos motivos, seja
por ter feito uma leitura política equivocada, seja por vaidade intelectual
(estava convencido de que era mais inteligente do que os outros
revolucionários), Trótski não conseguiu impedir – depois da morte de Lenin, em
1924 – que Liev Borisovitch Kamenev, Gregori Evseievitch Zinoviev (nascido
Ovsei-Gershon Aronovitch Radomyslsky) e Nikolai Ivanovitch Bukharin se
tornassem aliados políticos do arrivista Iossif Vissarionovitch Djugashvili,
também chamado de Josef Stalin. O georgiano, adepto da força bruta, depois de
controlar o Politítchedkoe Byurô
(Politburo), assumiu o poder. O que se seguiu é um exemplo clássico de lição
histórica: as revoluções só se tornam completas quando devoram os seus filhos
mais queridos. Para não ser transformado em mártir, Trótski precisou seguir
para um novo exílio, em 1929. Aqueles que o traíram, Kamenev, Zinoviev e
Bukharin, não tiveram a mesma sorte. Depois de processos judiciais
fraudulentos, foram expurgados do poder e fuzilados – em 1936. Quatro anos
depois, vitima de uma trama diabólica, Trótski foi assassinado na Cidade do
México.
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Leonardo Padura |
O romance histórico O Homem que Amava os Cachorros, do
cubano Leonardo Padura, retoma, ficcionalmente, ou melhor, arqueologicamente, a
história que é comum a alguns dos personagens mais importantes do século
XX.
Tour
de force narrativo, o livro procura manter-se longe do
maniqueísmo político e o mais próximo possível da essência literária. Oscilando
entre a descrição da brutalidade stalinista e do fanatismo trotskista, consegue
se esquivar das peças publicitárias. Para o bem e para o mal, Stalin e Trótski
eram faces de uma mesma moeda. E, se os papeis fossem invertidos, provavelmente
muito pouco teria mudado na história russa – embora Liev Davidovitch fosse um
pouco, não muito, mais humano do que Iossif Vissarionovitch.
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Liev Davidovitsch Bronstein |
O texto está dividido em
vários planos narrativos. O principal, focalizado na figura do escritor cubano
Iván Cárdenas Maturell, serve de epicentro para que a narrativa dos outros
personagens possa aflorar. Um sujeito, que diz se chamar Jaime López, relata
para Iván uma história impressionante. E o faz de tal forma que o deixa ansioso
por ouvir cada capítulo dessa narrativa. Ao mesmo tempo, por vias transversas,
não-verbais, parece fornecer autorização para que o cubano possa contar para
outras pessoas o que está ouvindo. Ou seja, quer que Iván transforme tudo o que
está contando em um livro. E para que isso se complete, antes de ser devorado
por um câncer devastador, Jaime López envia ao escritor uma longa carta, mais de cinquenta folhas escritas à mão
numa caligrafia muito espremida, quase
infantil e, depois, uma cópia do livro que foi escrito por Luis Mercader.
Ao mesmo tempo em que
muitas coisas se esclarecem, outras tantas se misturam com a perplexidade. Iván não consegue compreender como foi que se
tornou possível a sua participação nessa confusão: Como podia alguém escapar da história para ir passear com dois cães e
um cigarro na boca por uma praia de minha
realidade?
A resposta não existe.
Mas, a história que Iván recebeu de presente envolve um dos personagens mais
estranhos da política mundial: Jaime Ramón Mercader del Rio Hernández (aliás
Adriano, aliás Jacques Mornard Vandendreschs, aliás Frank Jacson, aliás Jaime
López, aliás Ramón Pavlovitch López, além de outros codinomes). Combatente
republicano na Guerra Civil de Espanha, Ramón foi um espectro camaleônico, um
fanático ideológico. Recrutado pelos russos para se tornar um agente de elite
do Narodnyy Komissariat Vnutrennikh Del
– NKVD (Comissariado do Povo para Assuntos Internos), depois de intensivo
treinamento, recebeu uma missão muito especial: eliminar Trótski.
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Jaime Ramón Mercader del Rio Hernández |
Após Stalin assumir o
controle estatal, a vida de Trótski se transforma em um martírio.
Simultaneamente à penúria (econômica, emocional) produzida por um novo exílio,
ainda há uma lenta fila de homens mortos. Dolorosas são as mortes dos filhos:
Nina Nevelson e Zinaida (Zina) Volkova, filhas de Alexandra Lvovna
Sokolovskaia, Liev (Liova) Sedov e Serguei (Serioja) Sedov, filhos de Natalia
Ivanovna Sedova. Dos familiares, somente Sieva, filho de Zina, consegue escapar
do massacre promovido pelos stalinistas. Não satisfeito em secar todas as
fontes vitais que alimentavam a família de Liev Davidovitch, centenas de
intelectuais trotskistas são mortos. Essa carnificina não se mostra suficiente.
Stalin quer mais. Muito mais. Quer a morte de Trótski – que, por algum
mecanismo psicológico, causa grande mal-estar ao senhor de Moscou.
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Iossif
Vissarionovitch Djugashvili |
A História, assim como a
Medusa, costuma destruir aqueles que ousam olhar diretamente para o seu rosto. Algum dia, (...), se reconhecerá que foram
os erros dos revolucionários, mais que o empenho dos imperialistas, que
atrasaram as grandes mudanças da sociedade humana, percebe o personagem
Liev Davidovitch em um dos momentos cruciais da narrativa. No mesmo sentido, a
voz do narrador interrompe a descrição dos fatos históricos para concluir que Muitos, (...), se veriam obrigados a
reconhecer que o stalinismo não tinha suas raízes no atraso da Rússia, nem no
ambiente imperialista hostil, como chegou a ser dito, mas na incapacidade do
proletariado de se transformar em classe governante. Teria que admitir também
que a União Soviética não fora mais do que a precursora de um novo sistema de
exploração e que a sua estrutura política tinha inevitavelmente de gerar uma
nova ditadura, maquiada, quando muito, com outra retórica...
Política é retórica, é
discurso, é aparência, é teatro – como tudo na vida. Embora, em alguns
momentos, a energia vital tente – a qualquer preço – negar toda e qualquer
canalhice. Na visão de Iván, a vida em Cuba (ou na Rússia) pode ser facilmente
resumida em poucas frases: era evidente
que estávamos mergulhados no fundo de uma atrofiada escala social na qual
inteligência, decência, conhecimento e capacidade de trabalho davam lugar à
habilidade, à proximidade do dólar, à posição política, a ser filho, sobrinho
ou primo de alguém, à arte de resolver, inventar, medrar, fugir, fingir, roubar
tudo que fosse passível de roubo. E ao cinismo, à porra do cinismo.
Por não compactuar com
esse cenário de degradação, Iván e Liev Davidovitch pagam o preço de estarem
jogando uma partida de xadrez sofisticada, repleta de lances obscuros e
combinações complicadas. A inevitável derrota se explica na falta de habilidade
para calcular todas as variantes, todas as possibilidades. No fim, os
adversários, obviamente mais rudes, mais ignorantes, são aqueles que vencem o
jogo.
A coda dessa sinfonia
macabra está na troca de narrador, no último capítulo. Como se fosse o herdeiro
da tragédia, restou a Daniel Fonseca Ledesma, grande amigo de Iván Cárdenas
Maturell, contar o desfecho da narrativa. Também lhe cabe lembrar que em das
muitas conversas que tiveram, ouviu o amigo lhe dizer que Eu também sou um fantasma... – síntese mais do que eloquente da
crueldade com que a política (e, por extensão, a literatura) trata homens como
Liev Davidovitch e Iván Cárdenas Maturell.
Raul J.M. Arruda Filho, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008),
publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no
Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional,
segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias
como se fossem uvas”.
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