Um palco para o crepúsculo
Finalmente o crepúsculo.
Esta hora de sombras indecisas que se despedem da luz. Eu me pergunto para que
tantas manhãs de claridade se é para o ocaso que sempre nos arrastam as tardes.
Já não escuto o pássaro
que canta na janela do meu quarto. Ele se cala com medo de tanta noite. Tudo o
que me resta é o presente, esta hora acinzentada. E eu não gosto do cinza. Nem
do presente, esse gatuno oportunista, desconcertante. Que deixa intactos os cristais,
a prataria, os quadros, o piano de cauda. E carrega os sentidos. E as pessoas.
E nos quer a todos mortos.
Mas por que estou aqui
falando de mim? Como se fosse minha vontade colher dó e lágrimas. Não. Chega de
piedade fabricada à esmola. É inútil. Além do mais, não há por que prantear o
meu outono se a mim sempre agradaram as folhas amarelas e o vento cometido em
rajadas de posse. Agradam-me as rugas do meu rosto que se esvai em anos. Eu as
meço apenas em lembranças. Há esplendor plantado nestes sulcos, nestas linhas
irregulares.
O que não há é tempo para
os detalhes. Vocês aí, nesse teatro semiescuro, mal se concentrando em esperar
a minha ida. Querendo a urgência do defunto vivo. Abutres. Criaturas arrogantes
que se acreditam diferentes de mim. Pois vou lhes contar um segredo: quando
chegar a sua hora, farão exatamente como eu. O mesmo apego ao passado, as
mesmas lembranças. O mesmo corpo ainda sentindo desejo. A mesma espera por uma
cama quente, por um arrepio, por um sexo que alivie qualquer dor. Vocês farão
exatamente como eu. Vão se agarrar a esse olhar para dentro, para trás, de
forma a não verem no relógio do tempo que não há mais tempo.
O que vocês não sabem é
como fazer. Ainda. Mas eu posso lhes mostrar como não se entristecer quando a
plateia se esvazia. E tentarei fazer das suas almas, como fiz da minha, um
lugar de coxias e cortinas. E lhes direi que o passado é a única certeza que
nos deve mover. Porque nele não há mais a ansiedade da mudança. E lhes direi
também que fujam do presente. Porque a realidade é equívoco.
Quando os panos de boca
subirem pela última vez, eu lhes direi, por fim, que não se inquietem com o
silêncio dos aplausos que se foram.
É hora de colher algazarra
na memória. É hora de solidão. Nosso melhor papel.
Cinthia Kriemler
- Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de
Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e
Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na
oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de
contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo
de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas
“Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma
de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da
Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há
mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
3 comentários
Que espetáculo, Cinthia! Embora curto, demora-se para ler, eis que, cada frase exige uma reflexão. Esse texto está fantástico!!
Um texto primoroso, com o qual me identifiquei sobremaneira.
Obrigada, Cecilia e Marco Aurélio!
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