João Ubaldo Ribeiro, o
maior escritor do Brasil contemporâneo
Morreu na madrugada desta
sexta-feira (18), aos 73 anos, o escritor baiano João Ubaldo Ribeiro. Ele era
membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), onde ocupava a cadeira nº 34
desde sete de outubro de 1993. João Ubaldo Ribeiro é autor de livros fundamentais
da literatura brasileira contemporânea.
Por José Reinaldo
Carvalho, editor do Vermelho
Destacamos, entre outros,
Sargento Getúlio, O Sorriso do Lagarto, Viva o Povo Brasileiro, O feitiço da
Ilha do Pavão, A Casa dos Budas Ditosos, Diário do Farol, que estão entre as
melhores obras do moderno romance brasileiro. Das suas crônicas, foram
publicadas coletâneas como Um brasileiro em Berlim, Sempre aos domingos, Arte e
ciência de roubar galinhas, O Conselheiro Come, A gente se acostuma a tudo, O
Rei da Noite e livros infantis, como Vida e paixão de Pandonar, o cruel, A
vingança de Charles Tiburone e Dez bons conselhos de meu pai.
Nascido em Itaparica no
dia 23 de janeiro de 1941, João Ubaldo morou em Sergipe, Lisboa e Rio de
Janeiro, para em seguida voltar à sua terra natal.
A convite do Instituto
Alemão de Intercâmbio, passou um ano em Berlim, na década de 1990, e depois
fixou residência no Rio de Janeiro.
Formou-se em Direito e fez
pós-graduação em Administração Pública pela Universidade Federal da Bahia
(Ufba), além de se ter tornado Mestre em Administração Pública e Ciência
Política pela Universidade da Califórnia do Sul.
Tinha formação acadêmica e
ensinou em faculdades de Filosofia e Administração, mas decidiu dedicar-se ao
ofício de jornalista. Foi repórter, redator, chefe de reportagem e colunista do
Jornal da Bahia; colunista, editorialista e editor-chefe da Tribuna da Bahia.
Contribuiu para jornais da Alemanha, Inglaterra, Portugal, e de todo o Brasil,
com suas saborosas e bem humoradas crônicas.
Ao longo da carreira, João
Ubaldo ganhou diversos prêmios literários, entre eles duas edições do Jabuti
(1972 e 1984), como Melhor Autor e Melhor Romance do Ano; Prêmio Anna Seghers
(Alemanha, 1996); Prêmio Die Blaue Brillenschlange (Suíça) e Prêmio Camões
(1998).
Vazio imenso
A morte do escritor João
Ubaldo Ribeiro deixa um vazio imenso nas letras nacionais. Em qualquer
circunstância, a vida cultural e literária do país fica mais pobre. Atrevo-me a
dizer que também de Portugal, onde viveu um período, foi publicado e teve
fortuna crítica. Desde Machado de Assis, o Brasil não tinha um escritor tão
fecundo e completo, um contador de histórias tão realista, na acepção que tem
este conceito de apreensão e expressão artística da vida em todas as suas
dimensões.
A perda é ainda maior em
tempos de minimalismo cultural, vazio de criatividade, pobreza semântica e
sintática e nenhuma imaginação.
Evocar João Ubaldo
equivale, às vezes, a mirar um pentimento, bosquejo escondido pela versão final
de uma pintura, outras, à visão expressionista em cores berrantes. Pois falar
de João Ubaldo, como jornalista e escritor, é, primeiramente, a remissão a uma
Bahia que já não existe e está oculta sob várias camadas de tintas, letras,
imagens, fatos, lembranças. A Bahia do grupo de que Ubaldo fazia parte com
Glauber Rocha e João Carlos Teixeira Gomes, o Joca, jovens que numa pensão dos
Barris, antigo bairro soteropolitano, e no Colégio Central, constituíram a
gênese de um movimento cultural de grande envergadura. Sim, são pentimentos,
coisas de sessenta anos passados. Um grupo de jovens, um jornal mimeografado,
uma câmera na mão e milhões de ideias fervilhando em mentes abertas e férteis.
Ubaldo foi jornalista da
“Tribuna da Bahia” e do “Jornal da Bahia”. Deste último, é impossível não
recordar a campanha heroica comandada por seu diretor, Joca, contra a
truculência do finado ACM. Sob o lema “Não deixe esta chama se apagar”, o velho
JB baiano enfrentou a seca de anúncios e viveu sustentado pela venda nas bancas
e assinaturas. O episódio não tem a ver diretamente com a biografia de Ubaldo,
mas do seu amigo Joca, a não ser por trazer à tona um momento da vida política
e cultural da Bahia, caldo em que se formou a personalidade e o talento do
jovem jornalista e escritor.
Seu pai, o jurista Manoel
Ribeiro, disciplinador rigoroso, talvez imaginasse carreira jurídica também
para o jovem, do que não excluía a exigência de erudição literária e do
aprendizado de idiomas estrangeiros. Em sua vida de romancista há alusões e na
do cronista citações sobre o rigor do pai obrigando-o a passar horas decorando
Shakespeare em inglês. O filho revoltado deve ter feito votos de ódio, mas o
posterior escritor genial com certeza agradeceu.
Ainda jovem, João Ubaldo
tinha personalidade e talento de homem de letras, contudo, não tinha certeza
sobre sua identidade profissional. Não sei se há registro disso em sua vasta
obra de cronista, mas contou-me durante conversa que tivemos em fins de 1988 na
sua terra natal, a ilha de Itaparica, coração da Baía de Todos os Santos. Em
viagem pelo interior, na companhia de Jorge Amado, perplexo diante de uma ficha
de registro num hotel que só os deuses da Bahia saberiam definir a categoria, o
Machado de Assis da contemporaneidade ficou catatônico, diante do quesito
“profissão”. Adivinhando-lhe o drama, vendo o jovem de mãos trêmulas e olhar
circunvagante, um paternal Jorge Amado em voz mansa, mas decidida, ordenou:
“Escreva: escritor”. Desde então, Ubaldo “saiu do armário”, e por algum tempo
abominou o ofício original, dedicando-se inteiramente às belas letras, sem se
tornar num beletrista, mas, repito, no maior escritor da língua portuguesa
escrita e falada no Brasil desde Machado de Assis.
O repertório imenso da
vida
João Ubaldo escreveu não
só sobre a gente baiana, mas a brasileira e a humanidade, porque o repertório
de sentimentos e dramas humanos não tem necessariamente época e lugar.
Ao nos associarmos às
homenagens ao grande escritor, não trazemos ao debate as posições políticas que
defendeu nos últimos tempos nas colunas dos jornais de circulação nacional. Em
dezembro de 1988, pedi para entrevistá-lo num momento em que, editor do órgão
central do PCdoB, A Classe Operária, acreditava, como ainda acredito, que um
jornal comunista tem tudo a ver com a política, a ideologia e, por osmose, com
a cultura, em todas as expressões, com tudo o que é humano e, por esta razão,
não nos causa nenhuma estranheza.
Pelas nove da manhã de um
indefectível dia ensolarado do verão baiano, eu aguardava o consagrado escritor
no bar da Praça da Quitanda, na Ilha de Itaparica, contígua a sua casa, como um
iniciado indiano espera a vaca sagrada. Eis que aparece voltando de uma
pescaria, de bermuda, chinelo e sem camisa, com dois bocapius pendurados ao
ombro contendo mariscos e peixes. Sorriso largo e vozeirão sonoro, perguntou:
“Então, foi você que veio de São Paulo? Peça aí dois uísques enquanto deixo essas
coisas em casa. Para mim, duplo”. Confesso que fiquei retado, porque tudo o que
detesto é ser identificado como “paulista” estando na Bahia, em cujo
subterrâneo jaz o meu umbigo e dos meus ancestrais e porque, fígado forte na
época, não aceitava ficar em inferioridade em termos de dosagem etílica. Pedi
um duplo para mim também e logo esclareci que era baiano como ele.
Desde então, a entrevista
“desandou”, virou um bate papo ao longo de toda a manhã. Está publicada (A
Classe Operária, jornal do PCdoB, ano 64, 6ª fase, nº 10, de 12 a 25 de janeiro
de 1989). Olhando o mar da imensa Baía, tivemos uma longa conversa amena e
divertida, entre copos de uísque, em que trocamos impressões e fizemos
reflexões muito além da pauta. Ubaldo falou do repertório imenso da vida. Na
altura, andava desesperado com a elaboração de O Sorriso do Lagarto. Dizia que
o trabalho “empacou” e tinha medo que “desandasse”. Como todos sabem, saiu um
romance magnífico que além de sucesso literário tornou-se série de TV.
A política e a ideologia
fizeram parte da conversa, em nenhum momento mostrou preconceito para com o
comunismo e o socialismo. Era um escritor, achava que nada podia sobrepor-se à
criação do artista.
Amigos e conterrâneos,
Jorge Amado e João Ubaldo
Perguntei sobre a censura,
que acabara de ser extinta com o fim da ditadura e a promulgação da nova
Constituição. João Ubaldo disse: “Eu acho que a censura nunca teve a menor
influência sobre a criação literária. Teve na divulgação, na fortuna literária,
crítica, pessoal de autores, oprimiu muita gente, matou muita gente, acabou com
muita coisa. Mas Glauber [Rocha, cineasta] dizia uma frase que é verdadeira,
que você pode aplicar a qualquer canalha que seja um artista de talento, que ‘o
artista é incorruptível’. O sujeito pode ser o pior bandido, tomar dinheiro
emprestado dos amigos dizendo que é para dar comida à mulher e jogar o dinheiro
fora no pôquer, pode ser um patife absoluto. Mas se ele é um artista de valor,
na hora que ele senta para fazer o negócio dele, não adianta que ele é
incorruptível. Existe uma coisa nele, sei lá o que é, eu não quero ser
metafísico, mas também não quero ser psicanalista. Mas existem coisas que, não
adianta, o sujeito não faz quando ele tem valor artístico. Ele é incorruptível
na hora que está fazendo o trabalho dele. Veja o caso de Bach, que vivia
pedindo cargos aos Brandenburgos. No entanto, a arte de Bach é incorruptível.
Balzac foi outro exemplo típico. Metido a aristocrata e não sei o que mais e
fez aquele negócio. Ele talvez até tivesse querido corromper a arte dele, quer
dizer, agradar, mas não adiantou porque ele não fez isso.”
Tomo o seu mote, sigo a
sua pegada, uso suas expressões. João Ubaldo não foi nenhum canalha, nem
bandido, nem quis corromper sua arte. Apenas teve, circunstancialmente, em
determinados momentos, opiniões políticas diferentes das nossas.
Posições políticas à
parte, não tenho dúvida em afirmar que foi o maior escritor contemporâneo do
Brasil, na linhagem de Machado de Assis e Jorge Amado, e um extraordinário ser
humano, de alegria contagiante e sabedoria inesgotável.
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