Herança
A abertura de um
testamento, julgo, é um momento doloroso: estamos diante da enorme beira que
passaram a ser as margens do coração. O resto é buraco. É ausência. É a falta
de quem era preenchimento.
Vivi a abertura do meu
próprio testamento. Senti na pele o arrepio durante a leitura de cada item da
lista. Ultrapassaram-me os olhares dos herdeiros, cravejados de curiosidades,
sedentos de preciosidades.
Na abertura do selo,
nenhuma trombeta tocou. Nenhum anjo desceu do céu. Bestas mesmo eram as caras
que esperavam em silêncios os últimos desejos da testamentária. A saber, os
meus desejos.
A sala quase vazia ecoava
o som surdo do carrilhão e do desfilar dos dedos do leitor sobre as páginas.
Como não poderia deixar de
ser, não faltou poesia à introdução. Versos que não encontraram tantos ouvidos
quanto gostariam ganharam vida, mas não ritmo, na voz metálica do oficial.
Ali, em poucas linhas,
minha única herança deixada se resumiam em uma palavra: memórias. Tudo o que
deixei foram as lembranças do que fui, do que fiz e vivi. E nomes. Aqueles
nomes que eu gostaria que fossem perpetuados.
Aqueles nomes que fizeram parte
de minha história.
Restou de herança aos meus
queridos um ensinamento e um sentimento pelo qual sempre tive o maior apreço: a
amizade.
Ora, se não existe dor
maior para o caso de se perder um amigo, tampouco há alegria maior que saber
que se teve um.
Em tempos de eu-te-ligo
sem que se troquem os número de telefone, saber-se querido e mais, saber-se
amigo, vale mais que ouro, mais que marfim. E, então, consciente do valor que
os amigos possuem, esses são a minha herança: a certeza de que houve no mundo
uma troca de companheirismo, um prazer em aproveitar as horas.
Houve um deleite com a
presença, com as palavras, com o que se viveu. Deixei de herança uma palavra de
gratidão para a vida: vivi e compartilhei a minha vida.
Diante de olhares
decepcionados e outros emocionados, os meus olhos ficaram marejados: eu havia
conseguido. Chegara ao topo mais alto que se pode desejar, experimentei as
delícias de se ter pares, de saber reconhecê-los e preservá-los.
Ao final da leitura de meu
testamento, com a sala esvaziando-se, levantei-me. Lavei o rosto e fiz questão
de esquecer a agenda.
Ao despertar do sonho mais
lúcido que tive, fiz uma promessa ainda mais sagrada que o tal testamento
onírico: deixaria a mesma herança, mas páginas seriam poucas para tantas
lembranças. Saí apressada para rever amigos, fazer novos e construir as
memórias que me compõem, sendo grata com o ar que respiro
Dy Eiterer.
Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil. Edylane é Edylane desde 20 de
novembro de 1984. Não ia ter esse nome, mas sua mãe, na última hora,
escreveu desse jeito, com "y", e disse que assim seria. Foi feito. Essa
mocinha que ama História, música e poesia hoje tem um príncipe só seu,
seu filho Heitor. Ela canta o dia todo, gosta de dançar - dança do
ventre - e escreve pra aliviar a alma. Ama a vida e não gosta de nada
morno, porque a vida deve ser intensa. Site:Dy Vagando
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