A
contemporaneidade de “Elegia 1938”, de Carlos Drummond de Andrade
Diante da decadência de
uma sociedade que perde gradualmente seus referenciais, o poeta critica a
mecanização do homem e a falta de sentido da vida
Sinvaldo
Júnior
Especial para o Jornal Opção
Os temas políticos, o
sofrimento do ser humano e as guerras, a solidão, o mundo frágil, os seres
solitários e impotentes ante o sistema são uma das facetas da poesia drummondiana.
Num mundo em que se prezam os conflitos (sobretudo com os quais não se
aprende, mas se destrói), a automatização do homem, o cinismo, a indiferença, a
hipocrisia, cabe ao poeta, lírico e angustiadamente (dada a sua impotência),
cantar este mundo tal como ele é, visto que não pode, sozinho, modificá-lo — é
o que se percebe no poema “Elegia 1938”, de Carlos Drummond de Andrade:
Trabalhas sem alegria para
um mundo caduco,
onde as formas e as ações
não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os
gestos universais,
sentes calor e frio, falta
de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques
da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a
renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem
guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes
de sinistras bibliotecas.
Amas a noite pelo poder de
aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os
problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar
prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em
face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e
com eles conversas
sobre coisas do tempo
futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas
melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste
muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens
pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século
a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra,
o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho,
dinamitar a ilha de Manhattan.
Elegia? O que é isso? É um
poema composto de versos hexâmetros e pentâmetros alternados — conceito que não
se encaixa ao poema em questão —, ou poema lírico de tom terno e triste; canção
de lamento — conceitos que se encaixam plenamente com o tom e a temática do
poema de Drummond.
Embora o sistema do mundo
não ofereça nenhum exemplo, nada que verdadeiramente valha a pena, o homem é o
maior construtor desse mundo, para o qual trabalha e, em consequência indireta,
sente calor, frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual, o que denota sua
incoerência ou tamanha cegueira, pois, pergunta-se: por que se ocupar com
trabalhos que nada lhe oferecem mas, ao contrário, lhe privam de
verdadeiramente viver?; por que contribuir para um sistema que dá mais
importância ao capital?; por que se conformar em fazer o que todos fazem
(gestos universais) se, mesmo dedicado (cegamente dedicado), não se ganha nada
em troca? — são questões levantadas pelo poema, cuja atualidade nos espanta. Ou
não?
Os heróis (aí cabe uma
ironiazinha) fazem apologia à virtude (mas inventam guerras e matam), à
renúncia (mas são vaidosos), ao sangue-frio (mas pregam o ódio) — discurso que
contribui e corrobora o verdadeiro intento do sistema e de seus criadores:
cegar, desindividualizar o ser humano o máximo possível, porque assim é mais
fácil enganar. Prega-se uma coisa aos seguidores (cegos trabalhadores), mas os
“heróis” fazem outra, o oposto e, poderosos, possuem direitos que os meros
mortais não possuem, como abrir guarda-chuvas de bronze ou se recolher a
sinistras bibliotecas quando, à noite, neblina. E jamais — jamais — aceitariam
ser destituídos dos seus privilégios em prol do outro, até porque não aceita
nem enxerga a alteridade do outro.
A impotência é explícita e
inevitável: Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra — única forma
de fuga da realidade, válvula de escape. O sono é comparado à morte, pois
dormindo, os problemas te dispensam de morrer. Porém, o subterfúgio é efêmero,
dado que, ao despertar, tudo volta ao que/como era antes: a Grande Máquina (com
letras maiúsculas) existe, é real, posto que invisível (impalpável), o que
dificulta uma possível luta contra ela. O ser humano, pequenino, se confronta
(confronta?) com o sistema, grandioso. Mas é a insignificância do homem, ante
esse mundo, que, na verdade, sobressai. Sim, somos insignificantes. Ou ainda
duvida disso?
Mortos, na quarta estrofe,
pode equivaler às pessoas inseridas nesse (neste) contexto inumano — metáfora
do ser humano, tal qual ele é, visto que, automático, passivo, conformado, é
como se realmente morto estivesse. E não está? Os assuntos das conversas se
referem — sempre, sempre — ao futuro: esperança adiada. E mais fugas: horas de
amor e tempo de semear (sensações concretas e produtivas) são trocados por
literatura e telefone (prazeres passageiros e improdutivos, porque segundo
muitos a literatura é, de fato, inútil).
Em virtude de tudo isso,
basta (infelizmente) conformar-se, adiar para outro século a felicidade
coletiva, aceitar (a chuva, contra a qual nada se pode fazer), a guerra, o
desemprego e a injusta distribuição (contra as quais muito se poderia (e pode)
fazer, mas se...), pois não é possível, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan
(símbolo, no passado e mesmo agora, decorridos 74 anos, do sistema capitalista,
o qual é o corresponsável por tudo (ou nada). Resta, portanto, a revolta
contida, a incapacidade — a frustração. O que mais restaria?
É, assim, possível fazer
um paralelo do ano de 1938 (ano em que foi escrito o poema e ao qual se refere)
e o século 21 (pleno...), pois se percebe que nada, ou pouco, mudou — daí a
(infeliz) contemporaneidade do poema. Escrito um ano antes do início da Segunda
Guerra Mundial, em que poderosos ditavam e subordinados cumpriam, em que homens
(cegos ou indiferentes) se conformavam com o status quo (mesmo que esse status
quo os oprimissem, os robotizassem, os subjugassem, os matassem) — época que se
assemelha ao contexto vigente (de servilismo, de pseudodemocracia, de guerras
(injustificáveis), de ditadores (camuflados), de falta de organização e
cooperação entre indivíduos realmente individuais). Época, sobretudo e
consequentemente, de frustrações, porque sozinho (talvez com um trabalho
conjunto sim, vide [aqui cabe uma pitada de humor negro] o World Trade Center
em setembro de 2001), não se pode — por mais que se queira — explodir Nova
York, símbolo, ainda hoje, de poderio, do capitalismo, de dinheiro, de
imperialismo, causas, mesmo que indiretas (é sensato não sermos simplistas), de
grandes males da humanidade.
Os poetas (dentre eles
Carlos Drummond) existem, felizmente, para explicitar e cantar e escancarar o
medo: o medo dos soldados, o medo dos ditadores, o medo dos democratas. É uma
voz que destoa, ou deveria destoar. Dessa voz (des)toante, claro está, surge
libertações. Libertações inúteis que não mudam o mundo, posto que são
libertações individuais e individualistas. Somente de um conjunto de vozes
destoantes, mas harmônicas, surgiria a verdadeira libertação. Utopia? Sim, mas
a utopia é sempre melhor do que a cegueira e o cinismo. Ou não?
Sinvaldo Júnior é
escritor. Doutorando em Literatura.
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Um comentário
Pelo visto não tenha muita diferença de 1938 para os dias atuais, ou melhor acredito que estamos regredindo nas relações interpessoais. Caminhamos em direção da evolução tecnológica, mas de regresso como seres humanos. Restando pensar que um dia possamos acordar ou essa era venha acabar como outros e o mundo possa se reconstruir melhor( Como seres melhores que nós, que sejam realmente racionais).
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