Palavras solidárias e
astutas
por Celso Sisto
RUI, Manuel. Conchas e
búzios. Ilustrações de Mauricio Negro. São Paulo, FTD, 2013. 56p.
Boas histórias sempre
podem modificar o leitor. Um texto bem escrito, uma história bem contada, com a
linguagem trabalhada no ponto exato, pode ficar ecoando tanto no ouvido e na
memória do ouvinte, do leitor, do espectador, que ele nunca mais desgruda dela,
mesmo quando ela vai se misturando depois com o seu dicionário íntimo, que é o
seu mar de histórias, guardado bem lá no seu interior!
Neste livro, temos 7
pequenas histórias, interligadas por algumas questões básicas: a consideração
que se tem com o outro (como amigo), com o coletivo, com a comunidade, com o
desprotegido, com o que se encontra em situação de desvantagem. Em “A semente”
é preciso que o sol, a lua, o vento e a chuva cooperem, para que não falte
comida naquela aldeia no Huambo; em “A tartaruga”, os meninos Jó, Mindo e Nino,
que vão brincar na praia, acabam envolvidos na salvação de uma tartaruga, com a
ajuda da música, do sapo, das conchas e do pirilampo; em “O papagaio, os
caçadores e o leão”, um papagaio de Cabinda, que aprendera a imitar todas as
falas dos bichos, dos pássaros e dos homens, se vê às voltas com suas
habilidades para proteger o leão de um fim trágico na mão dos caçadores; já em
“A formiga e o mar”, Zinha, a menina que adora brincar na praia, com sua lata,
para fazer casas de areia, é surpreendida com as andanças de uma formiga que
costuma navegar dentro de uma concha; em “A pedra”, o menino Kapapelo, se livra
do grande apuro de ter sentado numa jiboia, no meio do caminho, pensando ser
uma pedra, após prometer narrar-lhe uma história; em “A manga”, dois meninos
(Jojó e Nelito) que vão à pé para a escola (um estuda numa escola pública, o
outro num colégio privado) , se encontram no caminho, ficam amigos e dividem
uma saborosa manga; por fim, chegamos, à história “Era uma vez”, que com muito
humor, conta a aventura de duas cadeiras num baile, que acabam se encontrando
porque a cadeira mais velha está cansada e não quer suportar nenhum peso em
cima dela, além do seu próprio, dançando cuduro.
Os textos são curtos e
escritos num ritmo que proporciona uma agradável fluência. As histórias,
inusitadas, ora apostando no humor, ora enchendo-se de poesia, mantém uma progressão entre elas, que culmina
com a atmosfera de festa, em que duas animadas cadeiras são a principal
atração. Todos falam nestes contos, e portanto, todos os elementos são dotados
de vida, seja o vento, da primeira história, ou as conchas que batucam ritmadas
na história da tartaruga.
Por trás de histórias
assim tão condensadas, está um enorme sentido crítico, que vai desde o direito
de todos ao acesso à comida, passando pela proteção de animais em extinção, até
a rebeldia como forma de livrar-se da exploração e da opressão. Mas tudo isso
sempre envolto numa linguagem que também revela ternura e fraternidade.
Os contos do angolano
Manuel Rui são também uma grande oportunidade de experimentarmos um português
com acento africano, com um vocabulário próprio de Angola, que tem um sabor pra
lá de especial, porque enriquece os sentidos e também nos aproxima. De algum
modo, em todas as histórias deste livro, fica convencionado que é preciso
desmascarar as ações que limitam a liberdade de tudo e de todos, sempre em
benefício de uma minoria. E o que as histórias apontam, pode ser intuído pelo
leitor mais perspicaz: só os acordos entre as partes são capazes de construir o
bem-comum.
O ilustrador Maurício
Negro criou um livro dinâmico, que joga com as cores das páginas, conforme a
história, alternando os fundos azuis, ocres e verdes. Ele mesmo diz que seu
trabalho se concentra no uso de pigmentos naturais, pastel oleoso e recursos
digitais. Mais está justamente na harmonização desses recursos o seu grande
trunfo. E ele se esbalda, no uso dos desenhos, gravuras, texturizações, efeitos
(de gravura em metal e xilogravura, por exemplo, de pinceladas, de cores
envelhecidas, de tintas aguadas, etc.). Em geral, há uma imagem colorida na
abertura das histórias e uma ou outra vinheta ao final de alguns contos. E os
olhos têm muito o que descobrir na profusão destes recursos.
O texto do estudioso
Benjamim Abdala Júnior, que apresenta a obra é um primor. E faz jus ao lugar de
Manuel Rui como um provocador da harmonia. O escritor foi sempre um lutador.
Escreve poesia, conto, romance, teatro e livros para crianças e jovens. Foi
ministro, atuou na ONU e é autor do Hino Nacional de Angola. Está sempre ligado, com um grande sentido
crítico, a tudo o que vem ocorrendo em seu país depois da libertação. Ainda
torcemos para que chegue ao Brasil uma de suas obras mais famosas “Quem me dera
ser onda”, ganhadora do prêmio “Caminho das estrelas”, várias vezes reeditada e
adaptada para a televisão e para o teatro. Menos aqui! Uma lacuna!
Esse texto foi originalmente publicado no site: http://www.artistasgauchos.com.br/
Celso Sisto
é escritor, ilustrador, contador de histórias do grupo Morandubetá
(RJ), ator, arte-educador, crítico de literatura infantil e juvenil,
especialista em literatura infantil e juvenil, pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), Mestre em Literatura Brasileira pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Doutor em Teoria da
Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUC-RS) e responsável pela formação de inúmeros grupos de contadores de
histórias espalhados pelo país.
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