Literatura indígena e o
tênue fio entre escrita e oralidade
Por Daniel Munduruku
Artigo publicado na RevistaPessoa
A escrita é uma conquista
recente para a maioria dos 250 povos indígenas que habitam nosso país desde
tempos imemoriais. Detentores que são de um conhecimento ancestral apreendido
pelos sons das palavras dos avós, estes povos sempre priorizaram a fala, a
palavra, a oralidade, como instrumento de transmissão da tradição, obrigando as
novas gerações a exercitarem a memória, guardiã das histórias vividas e
criadas.
A memória é, pois, ao mesmo
tempo passado e presente que se encontram para atualizar os repertórios e
descobrir novos sentidos que se perpetuarão em novos rituais que abrigarão elementos
novos num circular movimento repetido à exaustão ao longo de sua história.
Assim estes povos traziam
consigo a memória ancestral. Essa harmônica tranquilidade foi, no entanto,
alcançada pelo braço forte dos invasores: caçadores de riquezas e de almas.
Passaram por cima da memória e foram escrevendo no corpo dos vencidos uma
história de dor e sofrimento. Muitos dos atingidos pela gana destruidora
tiveram que ocultar-se sob outras identidades para serem confundidos com os
desvalidos da sorte e, assim, poderem sobreviver. Esses se tornaram sem-terras,
sem-teto, sem-história, sem-humanidade. Esses tiveram que aceitar a dura
realidade dos sem-memória, gente das cidades que precisa guardar nos livros seu
medo do esquecimento.
Por outro lado – e graças ao
sacrifício dos primeiros – outro grupo pode manter sua memória tradicional e
continuar sua vida com mais segurança e garantia. Esses povos foram contatados
um pouco mais tarde, quando os invasores chegaram à Amazônia e tentaram
conquistá-la como já haviam feito em outras regiões. Tiveram menos sorte, mas
também ali fizeram relativo estrago nas culturas locais e as tornaram
dependentes dos vícios trazidos de outras terras. Foram enfraquecidos pela
bebida, entorpecidos pela divindade cristã e envergonhados em sua dignidade e
humanidade.
Esses povos – uns e outros –
estão vivos. Suas memórias ancestrais ainda estão fortes, mas ainda têm de
enfrentar uma realidade mais dura que de seus antepassados. Uma realidade que
precisa ser entendida e enfrentada. Isso não se faz mais com um enfrentamento
bélico, mas através do domínio da tecnologia que a cidade possui. Ela é tão
fundamental para a sobrevivência física quanto para a manutenção da memória
ancestral.
Claro está que se estes
povos fizeram apenas a “tradução” da sociedade ocidental para seu repertório
mítico, correrão o risco de ceder “ao canto da sereia” e abandonar a vida que
tão gloriosamente lutaram para manter. É preciso interpretar. É preciso
conhecer. É preciso se tornar conhecido. É preciso escrever – mesmo com tintas
do sangue – a história que foi tantas vezes negada.
A escrita é uma técnica. É
preciso dominar essa técnica com perfeição para poder utilizá-la a favor da
gente indígena. Técnica não é negação do que se é. Ao contrário, é afirmação de
competência. É demonstração de capacidade de transformar a memória em
identidade, pois ela reafirma o Ser na medida em que precisa adentrar no
universo mítico para dar-se a conhecer ao outro.
O papel da literatura
indígena é, portanto, ser portadora da boa notícia do (re)encontro. Ela não
destrói a memória na medida em que a reforça e acrescenta ao repertório
tradicional outros acontecimentos e fatos que atualizam o pensar ancestral.
Há um fio muito tênue entre
oralidade e escrita, disso não se duvida. Alguns querem transformar este fio
numa ruptura. Prefiro pensar numa complementação. Não se pode achar que a
memória não se atualiza. É preciso notar que ela – a memória – está buscando
dominar novas tecnologias para se manter viva. A escrita é uma dessas técnicas,
mas há também o vídeo, o museu, os festivais, as apresentações culturais, a
internet com suas variantes, o rádio e a TV. Ninguém duvida que cada uma delas
é importante, mas poucos são capazes de perceber que é também uma forma
contemporânea de a cultura ancestral se mostrar viva e fundamental para os dias
atuais.
Pensar a literatura indígena
é pensar no movimento que a memória faz para apreender as possibilidades de
mover-se num tempo que a nega e que nega os povos que a afirmam. A escrita
indígena é a afirmação da oralidade. Por isso, atrevo-me a dizer como a poeta
indígena Potiguara Graça Graúna:
Ao escrever,
dou conta da minha
ancestralidade;
do caminho de volta,
do meu lugar no mundo.
Daniel Munduruku. Escritor
indígena com 45 livros publicados. É graduado em Filosofia, tem licenciatura em
História e Psicologia, é Doutor em Educação pela USP e pós-doutor em Literatura
pela Universidade Federal de São Carlos. É Diretor presidente do Instituto UKA
– Casa dos Saberes Ancestrais. Recebeu diversos prêmios no Brasil e Exterior
entre eles o Prêmio Jabuti, Prêmio da Academia Brasileira de Letras, o Prêmio
Érico Vanucci Mendes (outorgado pelo CNPq); Prêmio Tolerância (outorgado pela
UNESCO). Muitos de seus livros receberam o selo Altamente Recomendável
outorgado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ).
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