O que a forma como se educa diz sobre violência nas escolas
Escolas refletem dinâmicas de um país desigual e violento, dizem especialistas. Para eles, episódios recentes reforçam necessidade de repensar educação das novas gerações, com mais diálogo dentro e fora da sala de aula.
Cada vez mais recorrentes, episódios de violência nas escolas chamam atenção para a necessidade urgente de refletir sobre a educação das novas gerações dentro e fora de sala de aula.
Especialistas ouvidos pela DW foram unânimes em afirmar que, num país desigual e com altos índices de violência, tanto na esfera pública quanto na privada, as escolas só espelham uma dinâmica que já existe na sociedade – um quadro agravado pelo cenário de radicalização política.
"A violência no Brasil ainda é colocada como solução de problemas", explica Daniel Fatori, psicólogo e pesquisador pós-doutorando na área de saúde mental no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). Como exemplo, ele cita o discurso punitivista dominante nos debates sobre segurança pública, quando o fato de policiais matarem é percebido como algo positivo. "É uma visão que ainda permanece no Brasil, e que é muito problemática."
Essa cultura faz com que a pedagogia da educação pela violência, seja ela física ou psicológica, torne-se mais naturalizada por tabela. Essa abordagem, além de possivelmente desencadear comportamentos agressivos em crianças e adolescentes, é perigosa porque apresenta a violência a eles como uma ferramenta legítima para a vida em sociedade.
"Quando faltar razão você vai utilizar a violência? É isso que a gente tem feito", afirma o sociólogo Cezar Bueno de Lima, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR).
Os atentados violentos em escolas – cinco deles só no último ano, segundo levantamento da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – são a ponta visível do iceberg. Por baixo dele há pancadaria, gritaria, xingamentos e perseguição. Essas violências contaminam o ambiente escolar e minam o papel social das escolas ao privar jovens de uma experiência fundamental para seu pleno desenvolvimento como indivíduos e cidadãos.
Educação nas escolas ainda muito hierárquica
Professor do Departamento de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Paulo Carrano explica que parte da violência que existe hoje nas escolas pode ser explicada pelo conflito clássico de gerações: os jovens questionam a autoridade dos adultos, que por sua vez tendem a reagir reforçando hierarquias pela via da imposição, geralmente sem muito diálogo e alienando ainda mais os alunos. "Se antigamente o 'faz o que eu mando, não faz o que faço' funcionava, hoje não funciona mais", afirma.
O educador explica que os casos mais graves de violência surpreendem justamente porque a escola não conhece os alunos envolvidos nesse tipo de episódio. E não conhece porque não conversa e impõe uma hierarquia que aprofunda essa distância.
A solução, advoga Carrano, passa por uma postura radical de diálogo e transparência nas regras de convivência, tanto no ambiente escolar quanto familiar. Segundo ele, a história da humanidade mostra que os jovens sempre irão, invariavelmente, buscar seu lugar no mundo, e que reagir a esses esforços com autoritarismo e imposição de disciplina na marra só irá afastá-los.
"O jovem pode seguir esses caminhos sozinhos ou em relação de mediação e ajuda com o mundo adulto, desde que o mundo adulto não encare o jovem como uma folha de papel em branco onde ele vai escrever a sua vontade", afirma.
Para Carrano, não faz sentido impor disciplina se o objetivo da educação é formar sujeitos autônomos. É também por esse motivo que ele se opõe à militarização das escolas como projeto pedagógico.
"Uma instituição como a escola precisa educar em condição de liberdade, não de servidão", retruca. "Em um mundo onde somos levados a tomar decisões, muitas vezes solitárias, sem rede de apoio, não faz sentido querer educar esperando que alguém diga o que você tem que fazer."
Essa visão é compartilhada por outros especialistas da área da educação e saúde mental, que defendem um maior protagonismo juvenil na escola e a construção de relações mais democráticas e respeitosas, baseadas no diálogo, limites e na ideia de responsabilização – em casa e em sala de aula.
Pressão e clima de competitividade comprometem saúde mental
Psicopedagoga especializada em educação parental, Ge Gasparini observa que o sistema educacional brasileiro ainda é muito focado em competição, enquanto as características cognitivas individuais e o aspecto emocional ficam em segundo plano.
Ao negligenciar as próprias emoções e necessidades em nome de entregar aquilo que outros esperam deles, afirma, esses jovens acabam deprimidos e ansiosos.
Gasparini defende uma abordagem pedagógica nas escolas que ajude esses jovens, desde a infância, a ter clareza sobre os próprios sentimentos e a lidar com eles de uma forma mais saudável. "Tem que mudar a forma de receber esses alunos, acolher, ouvir, entrosar."
Carrano, da UFF, também insere na equação da saúde mental os apelos da sociedade de consumo, "que produz desejos permanentemente, muitos inalcançáveis" num contexto de desigualdade social. "Isso gera frustração, precarização, insegurança. Gera, inclusive, o desaparecimento da ideia de futuro", afirma.
"É também uma sociedade que elogia muito a competição – com o outro, com o mercado, consigo próprio. E que escanteou a ideia de solidariedade, de ajuda mútua. Isso tudo vai criando um quadro de sofrimento."
Lima, da PUC-PR, concorda. "A criança tem que assimilar desde cedo o imperativo de uma sociedade altamente competitiva e no limite destruidora, no sentido de: 'ou você me almoça, ou eu te janto'. Como você vai preparar uma criança equilibrada do ponto de vista racional e mental? Qual é o sentido dessa concorrência quase letal?"
Redes sociais como catalisadoras de problemas
O clima de competitividade, aponta Gasparini, é agravado pelas redes sociais, que corroem a autoestima dos jovens, principalmente daqueles que não têm uma rede de apoio no mundo real.
"O problema é a criança encontrar o único apoio fora de casa; aprender, ser aceita e acolhida apenas pelas redes sociais; ficar viciada em receber essa aprovação. Isso adoece qualquer pessoa", ressalta a psicopedagoga. "Será que é bom mesmo uma criança só ser aceita e só dizer as coisas que ela pensa na rede social, sem os pais saberem?"
O psiquiatra Rodrigo Bressan, do Instituto Ame Sua Mente, dedicado à promoção da saúde mental nas escolas, concorda. Ele compara a internet às ruas de uma cidade grande, e alerta para os riscos de deixar os filhos em ambientes virtuais sem nenhum tipo de supervisão, o que pode agravar quadros de tristeza, isolamento e ressentimento.
"Você deixa seu filho andar sozinho pelo seu bairro? Depende, né?", questiona Bressan. "É preciso participar mais do que os filhos fazem na rede, principalmente quando são mais jovens. Ali os pais não têm acesso, então não tem como educar."
Gasparini frisa que os pais, nesse caso, precisam dar o exemplo e zelar, dentro do possível, por uma relação de afeto e proximidade com os filhos.
Intolerância agrava clima violento nas escolas
Carrano, da UFF, cita ainda o desrespeito à diferença, com a perseguição de jovens em ambientes reais e virtuais, como agravantes da saúde mental nas escolas. "Escola e família precisam estar atentas a isso. Os jovens se sentem sós para enfrentar esse tipo de problema."
"O bullying é a ofensa sistematizada de uma forma que a pessoa fica indefesa. E isso causa muito problema mental mesmo. E quem pratica tem problemas também, os estudos demonstram isso", ressalta o psiquiatra Bressan.
Família não dá conta sozinha, diz educadora
Especialista em educação e violência, Miriam Abramovay, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), faz uma ressalva: famílias – às vezes monoparentais, não raro com mais de um filho – estão lutando com muito sacrifício para manter seus lares de pé em meio a uma economia em frangalhos e não podem ser responsabilizadas sozinhas.
"As famílias também não estão dando conta da educação, não é só a escola", afirma. "Às vezes esses pais também não têm a possibilidade de entender bem o que os filhos estão fazendo, não dão conta nem percebem. E a partir de determinada idade o controle dos pais é muito menor."
Lima, da PUC-PR, ressalta que a educação de jovens e crianças é disputada por um número cada vez maior de instituições além da família, cujo papel tornou-se "residual e concorrente" ao lado da escola, da mídia, das redes sociais e de instituições religiosas.
Carrano acrescenta que, diferentemente do que acontecia no passado, nenhuma dessas instituições, sozinha, é capaz de orientar totalmente os comportamentos e valores das novas gerações.
Questões estruturais comprometem capacidade de apoio escolar
Marcele Frossard, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, destaca que a educação pública, que concentra quase 90% dos estudantes secundaristas, tem suas limitações porque sofre com a falta de infraestrutura e professores.
"Há uma sobrecarga dos professores e das escolas de uma maneira geral, falta de interlocução entre as diferentes políticas públicas. É importante pensar nesse contexto de escassez de recursos. A realidade da maioria é escola pública, com famílias atravessadas por diversas dificuldades materiais – acesso a moradia, água, alimentação, transporte", elenca Frossard.
Ela cita ainda perseguição ideológica a professores e o desmonte da educação pública como projeto de emancipação e conscientização crítica. "O papel da escola é educar para a democracia. É o cultivo do respeito à diferença que nos fará ter uma sociedade que não veja a violência como a única estratégia de resolução de conflitos."
Conflitos esses que, na avaliação do sociólogo Cezar Bueno de Lima, só podem ser efetivamente remediados através do diálogo – preterido, segundo ele, em nome de soluções imediatistas e autoritárias que retroalimentam dinâmicas violentas.
Atualmente liderando uma pesquisa sobre violência e justiça restaurativa em escolas da rede pública no Paraná, Lima fala em síndrome da intolerância e impaciência social generalizada para explicar a violência nas escolas.
"A gente perdeu a capacidade de escutar a outra pessoa e dialogar. As pessoas não têm mais tempo, toleram cada vez menos", afirma. E é aí que a violência entra como um "atalho". "Conflitos são inevitáveis, fazem parte da vida. A questão é: eu tenho uma maturidade para resolver esses conflitos que não passa pela necessidade de exterminar o outro?"
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