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ENCONTROS COM A NOVA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA: FÁBIO KABRAL


Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea: Fábio Kabral*
Por Enéias Tavares

Entidades africanas, seres feitos de carne, espírito e metal e antigos mundos futuristas estruturam o afrofuturismo de Fábio Kabral

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A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, dedicado à literatura fantástica nacional, a curadoria e a apresentação são do escritor e pesquisador Enéias Tavares.

Entre Orixás, Caçadores e Robóticos: Fábio Kabral

Altas tecnologias e imaginários antigos. Armas potentes e sociedades distópicas. Heróis, heroínas, orixás e seres mágicos vindos do passado para iluminar o presente com visões de futuros possíveis e impossíveis. Representatividade de gêneros, culturas e orientações, não raro enfatizando um amanhã em que a cultura afro ganhe destaque, valorização e protagonismo. Num mundo de encanto místico, assombro tecnológico e horrores sociais, histórias insólitas têm, já por décadas, nos instigado a repensar o Brasil e o que somos enquanto país multicultural.

Mas poucos estilos e estéticas compreendem um potencial tão grande quanto o afrofuturismo, um gênero literário de grande pertinência em nossos dias, tanto como fomento ao mercado editorial de viés fantástico quanto convite a reconsiderarmos nossas dividas históricas e as culturas de hoje e de ontem que precisam ser vistas e conhecidas. Além disso, é um gênero obrigatório àqueles que desejam fechar os olhos para o presente e ver o amanhã sob óticas esperançosas ou desalentadoras, pois como toda a ficção científica distópica o faz, o afrofuturismo também serve de alerta para o que estamos deixando às próximas gerações.

Em Fantástico brasileiro (Arte & Letra, 2018), eu e Bruno Anselmi Matangrano, dedicamos um capítulo ao imaginário de matriz africana. Nele, na página 219, fizemos o seguinte adendo: “Ao contrário do imaginário europeu, que sempre permeou e ainda permeia nossa literatura, cultura e artes em geral, ou do imaginário indígena que ao longo de toda nossa história foi sendo constantemente resgatado como vimos em capítulos anteriores, por nomes como Inglês de Souza, Mário de Andrade, Simão Lopes Neto, Câmara Cascudo, Franklin Cascaes e pelos fantasistas” dos últimos anos, “o imaginário de matriz africana, apesar de presente em nossa cultura e no cotidiano, foi deixado de lado da maior parte de nossa literatura”.

A fim de compensarmos essa defasagem, fizemos um pequeno recorte de onze autores que se dedicaram a esse imaginário: Reginaldo Prandi, Carmen Sagenfredo, A. S. Franchini, Raul Longo, Carolina Cunha, Rogério Andrade Barbosa, Jarid Arraes, Muniz Sodré, Fábio Kabral, JP Pereira e Simone Saueressig. Os primeiros seis nomes dedicaram suas produções a recontar mitos e lendas, em obras como Mitologia dos Orixás (2000), As melhores histórias da mitologia africana (2008) e Filhos de Olorum – contos e cantos do Candomblé (1980 e 2011). Já os demais, partiram do imaginário africano para contar novas histórias, como em As lendas de Dandara (2015), na trilogia Deuses de dois mundos (2013-2015) e em obras como O palácio de Ifê (1989) e A estrela de Iemanjá (2009).

Quanto ao afrofuturismo – termo cunhado pelo norte-americano Mark Dery em 1994 a partir da obra dos artistas Greg Tate, Tricia Rose e Samuel R. Delany –, trata-se de um movimento estético e social, presente em diferentes artes, estilos e iniciativas, que valoriza o protagonismo de personagens, criadores e artistas negros ou pretos, não raro valorizando a história e o imaginário de matriz africana. No caso da produção afrofuturista de ficção científica – gênero inicialmente estudado por Dery – essa reforçaria também esse protagonismo, narrando suas vivências e desafios e adensando suas identidades e trajetórias, não ignorando temas como racismo, preconceito e opressão étnico-racial no contexto da África diaspórica.

O portal da Academia Brasileira de Letras define o termo Afrofuturismo como um “movimento cultural, estético e político que se manifesta no campo da literatura, do cinema, da fotografia, da moda, da arte, da música, a partir da perspectiva negra, e utiliza elementos da ficção científica e da fantasia para criar narrativas de protagonismo negro, por meio da celebração de sua identidade, ancestralidade e história; em geral, obras pertencentes a este movimento procuram retratar um futuro grandioso, caracterizado tanto pela tecnologia avançada quanto pela superação das condições determinadas pela opressão racial, dentro do contexto da vivência africana e diaspórica. (Esta definição não exclui outras formas de descrever ou abordar o movimento, que possui conceituações variadas de diversos estudiosos e pesquisadores do tema.)”

Já o escritor Ale Santos, autor do livro Rastros de resistência: Histórias de luta e liberdade do povo negro (2019) e do romance O último ancestral (2021), em entrevista para a CNN Brasil, fala do surgimento do afrofuturismo “como um movimento social e uma ação política de artistas negros. Ele, basicamente, traz a perspectiva negra, sob os aspectos da estética e sob os aspectos culturais da ancestralidade negra, para as discussões da ciência, para as discussões da ficção científica e para as discussões da tecnologia. Ele acaba utilizando tudo isso para produzir algumas narrativas, que questionam a sociedade, e que colocam o negro em um futuro que ele nunca foi imaginado para estar”.

Seria um exemplo claro da importância e popularidade do gênero o filme Pantera Negra, pertencente ao universo quadrinístico da Marvel Comics. Laureado como sucesso de público e crítica por trazer à frente da tela um tipo de representação e heroísmo que por muito tempo ficou fora do cinema e sobretudo do cinema de entretenimento fantástico, Pantera Negra é um exemplo de como a cultura afro pode ser reinventada em som, imagem, enredo e criação de mundos insólitos. É nesse contexto que a obra de Fábio Kabral se destaca, sendo considerado um dos primeiros nomes representativos do afrofuturismo em nosso país.

Natural do Rio de Janeiro, Fábio aprendeu a gostar de ficção desde cedo graças ao seu pai, um leitor apaixonado por ficção científica. Suas primeiras leituras foram histórias em quadrinhos, criando nele o desejo de trabalhar com escrita ainda bem cedo. Aos 8 anos de idade, ganhou um concurso de poemas em três diferentes categorias. Ao longo da adolescência, ele seguiu devorando mais e mais fantasia, em filmes, livros e videogames. Tornou-se um grande fã de RPG e da série literária O senhor dos anéis ainda no início dos anos 1990, bem antes dela virar filme.

Kabral se formou ator pela Casa das Artes de Laranjeiras (CAL) no Rio de Janeiro no início dos anos 2000. Trabalhou como ator em peças de teatro e fez pontas em novelas e programas televisivos entre 2000 e 2007, quando também atuou como dublador. Em 2008, ingressou no curso de letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em 2011, ingressou no curso de letras da Universidade de São Paulo (USP). Embora os dois cursos tenham sido interrompidos, seu desejo por tornar-se escritor continuou. Após escrever muitas histórias ao longo dos anos, em 2014, finalmente realizou seu sonho de publicar um livro: Ritos de passagem, pela editora Giostri.

Nela, Kabral cria a cidade de Kinemara, um cenário que mescla elementos de alta fantasia com elementos de ficção-científica e mitologia inspirado nas lendas dos povos de Congo e Angola. Em Kinemara, a história traz ao primeiro plano quatro heróis: um jovem idealista filho de um soldado, um escravizado com pendores poéticos, uma princesa ameaçada por sua própria família e um herói solitário cuja comunidade ancestral foi destruída. A aliança desses heróis os colocará diante de perigos e desafios, alguns mágicos, outros físicos, que incluem monstros, inimigos e ameaças enigmáticas e o aprendizado de um mundo mais hostil que acolhedor.

Em 2017, Fábio realizou o primeiro de muitos rituais iniciáticos nas espiritualidades de matriz africana que viriam ao longo dos anos, e desde então sua visão espiritual e imaginativa vem se expandindo, temática que também marca suas leituras e escritos. No mesmo ano, publicou O caçador cibernético da Rua 13 pela Editora Malê, o primeiro de uma trilogia que tem por cenário a metrópole fictícia Ketu Três e que homenageia o imaginário africano e as crenças do Candomblé.

No romance, seguimos a vida de João Arolê, um mutante-ciborgue que trabalha como caçador de espíritos nefastos. João mora em Ketu Três, um lugar onde a alta tecnologia convive com seres do imaginário dos povos iorubá. O próprio autor define seu cenário como uma “cidade de arranha-céus e carros voadores, lar do povo melaninado, filhos dos Orixás, regido por sacerdotisas-empresárias com poderes paranormais e tecnologias movidas pela energia eletromagnética de espíritos ancestrais”. Meio máquina, meio humano, caberá ao herói Arolê enfrentar várias ameaças enquanto revive lembranças traumáticas de seu passado.

Em 2019 e 2021, Fábio publicou outros dois livros sobre Ketu Três, também pela Editora Malê: A cientista guerreira do facão furioso e O blogueiro bruxo das redes sobrenaturais. No final de 2022, foi anunciado como novo escritor da editora Intrínseca, pela qual deve publicar Sopro dos deuses em 2023. Trata-se de sua obra mais ambiciosa, um grande épico de fantasia inspirado na mitologia afro-brasileira dos Orixás, cujo cenário são as Terras Encantadas de Àiyé, onde habitam caçadores, guerreiros, sacerdotisas e bruxas, além de monstros horrendos e espíritos malignos.

Ao lado de sua produção literária, Kabral também tem produzido artigos e ensaios sobre afrofuturismo para livros e revistas, sendo também entrevistado para jornais e portais quando o assunto é literatura e/ou afrofuturismo. Também já debateu bastante sobre afrofuturismo e afrocentricidade, mitologia e ancestralidade, ficção científica e fantasia em palestras, oficinas, rodas de conversa, podcasts e vídeos no YouTube. Junto com Karolina Desireé, ministrou oficinas de escrita e de criação afrofuturista nas redes Sesc e Fábricas de Cultura da Grande São Paulo.

No conto “A caçadora de cabeças”, escrito exclusivamente para a coluna Encontros, temos uma mostra da imaginação fervilhante de Kabral. Nessa história, seguimos os passos de uma heroína – ou anti-heroína – chamada Apànìyàn, uma coletadora de vidas, histórias e memórias. Numa trama repleta de surpresas, cenas marcantes, ecos de uma tradição oral que Kabral tanto revive quanto reimagina, sobretudo ao investir em paralelismo descritivos e orais, temos acesso a um enredo que celebra e altera o imaginário africano, deixando aos leitores o desejo de saberem mais dessa cultura e de seus personagens.

Mas não só isso. Em seu conto, e em sua ficção e carreira, Fábio Kabral nos desafia a pensarmos em um futuro no qual igualdade venha a significar respeito e valorização da multiplicidade étnica e cultural que imperativamente ilustra a nossa cultura e a de tantos outros povos, daqui e de lá, do hoje e do ontem. E esse, entre muitos outros êxitos, é o que caracteriza o afrofuturismo como um gênero tanto instigante e atraente quanto pertinente e relevante.

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*Fábio Kabral escreve ficção especulativa com foco em fantasia. Atualmente produz o livro Sopro dos deuses, épico de fantasia baseado na mitologia afro-brasileira dos Orixás. Já publicou Ritos de passagem (Giostri, 2014), O caçador cibernético da rua 13” (Malê, 2017), A cientista guerreira do facão furioso (Malê, 2019) e O blogueiro bruxo das redes sobrenaturais (Malê, 2021).

*Enéias Tavares é escritor, professor e tradutor. Tem trabalhado com projetos transmídia envolvendo a série Brasiliana Steampunk. Seus livros já foram publicados por editoras como LeYa, AVEC, Arte & Letra e DarkSide Books. Sua curadoria em Nova literatura brasileira valoriza a produção insólita nacional, partindo do projeto Fantástico brasileiro, sediado na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul.




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Fonte:
ITAÚCULTURAL - Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea: Fábio Kabral - 11/05/2023 - Disponível em <https://www.itaucultural.org.br/secoes/colunistas/encontros-com-a-nova-literatura-brasileira-contemporanea-fabio-kabral> Acessado em 15/05/2023.

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