'Literatura e compromisso social', por José SaramagoPor: Bloghemia
(el texto original, en español, se puede leer AQUÍ)
"Deixemos as escolas de lado, deixemos de lado a cultura em geral, deixemos a arte, a filosofia e a ciência, para cuja devida consideração me faltaria conhecimento e autoridade, e voltemos à literatura e sua relação com a sociedade."
José Saramago.
Artigo do escritor e Prêmio Nobel de Literatura, José Saramago, publicado originalmente na edição 119 da revista Quimera, em junho de 1993. _____________________________
Por: José Saramago
Embora possa humilhar certas vaidades literárias mais inclinadas do que a modéstia aconselha, a magnificar seu papel, não temos escolha a não ser reconhecer que a literatura não transformou e não transforma o mundo socialmente, e que o mundo é que transformou e está transformando, e não apenas socialmente, à literatura
Repito essas palavras lentamente – literatura, compromisso, transformação social – pronuncio as sílabas como se em cada uma delas ainda houvesse um significado secreto esperando para ser revelado ou simplesmente reconhecido, tento redirecioná-las para a integridade de um sentido primeiro, restaurado do desgaste do uso, purificado das vulgaridades da rotina, e me encontro, sem surpresas, diante de duas formas de reflexão, sabe-se lá se as únicas possíveis, percorridas mil vezes, é verdade, mas para a qual regressa sempre o nosso destino inescapável, quando continua a crise em que vivem os seres humanos – seres em crise, por excelência – , e os humanos, talvez, por isso mesmo deixa de ser crônica, habitual, para se tornar aguda e, depois de um tempo, culturalmente insustentável. Como parece ser a situação deste homem que hoje somos e deste tempo em que vivemos.
A primeira forma de reflexão, que a partir de agora, e pedindo perdão a quem pensa o contrário, ousaria descrever como ingênua, seria a de uma tendência muito comum que consiste em incluir a literatura entre os agentes de transformação social, entendendo tal denominação, no caso, não tanto quanto referindo-se às consequências sociais dos fatores estéticos, mas sim a supostas influências determinantes, na ordem ética e na ordem axiológica, independentemente do caráter positivo ou negativo de suas manifestações. De acordo com esse modo de pensar e extrapolar, em benefício do raciocínio, conteúdos e formas historicamente diferenciados, para podermos abranger em uma única visão o ensino, a literatura e a cultura em geral, teríamos que coincidir hoje, apesar das trágicas negações da realidade, com a convicção panglossiana de nossos avós setecentistas e otimistas, para quem abrir uma escola equivalia a fechar uma prisão. Que as estatísticas escolares e judiciárias venham nos dizer se a massificação da educação se configurou, de fato, como prevenção suficiente ou antídoto efetivo contra a massificação dos crimes, que é, sem dúvida, uma das características do nosso final de século...
Deixemos então as escolas de lado, deixemos de lado a cultura em geral, deixemos a arte, a filosofia e a ciência, para cujo peso me faltaria conhecimento e autoridade, e voltemos à literatura e à sua relação com a sociedade. Mantenhamo-nos discretamente nos domínios do ético e do axiológico (sem os quais se deve reconhecer que qualquer exame de uma dada transformação social, seja qual for a sua época, teria de se contentar com pouco mais do que uma tabela de pesos e medidas) e reconheçamos, por mais que essa verificação puna a nossa confiança, que as obras dos grandes criadores literários do passado, de Homero a Cervantes, de Dante a Shakespeare, de Camus a Dostoiévski, apesar da excelência do pensamento e do tipo de beleza que nos propunham variadamente, eles não parecem ter originado, em sentido pleno, qualquer transformação social efetiva, embora tenham uma forte e por vezes dramática influência no comportamento individual e geracional. Ao nível da ética, dos valores, do respeito humano, quero dizer, sem cinismo, que a humanidade (refiro-me, claro, ao que costumamos referir ao mundo ocidental) seria exactamente o que é hoje se Goethe não tivesse vindo ao mundo. E que, reforçando essa ideia, não parece que a leitura do Fioretti de São Francisco de Assis tenha salvado sequer uma das vítimas da Inquisição...
É admissível, então, afirmar que a literatura, mesmo quando por razões religiosas ou políticas se dedicou a um missionarismo de bons conselhos e a uma engenharia de novas almas, não só não contribuiu, como tal, para uma modificação positiva e duradoura das sociedades, como provocou, muitas vezes, sentimentos doentios de frustração individual e coletiva, resultante de um balanço negativo entre teorias e práticas, entre o que foi dito e o que foi feito, entre uma carta que proclamou um espírito e um espírito que não foi reconhecido na carta. Seria muito mais fácil para aqueles que insistem em descobrir em todas as coisas relações mútuas de causa e efeito, reunir evidências da influência perversa da literatura (de uma parte dela, pelo menos) sobre os costumes e a moral e, portanto, sobre a sociedade, tarefa, aliás, bastante favorecida pela presença obsessiva, por exemplo, de algumas dessas obras e de alguns desses autores no imaginário sexual de milhões de pessoas, alimentando-as de fantasmas e fantasias. Para o qual, de outra forma, faltariam referências, abonos, modelos, enfim, uma filosofia de vida completa... Assim, entendidas tais relações e adotando a atitude, mais comum do que se imagina, daqueles que acreditam que algo só tem existência verdadeira a partir do momento em que a palavra que o nomeia existe, o sadismo teria se revelado ao mundo quando o Marquês de Sade, ainda criança, arrancou pela primeira vez as asas de uma mosca e o masoquismo também teve que esperar o dia em que a pequena alma de Sacher-Masoch, talvez com a mesma idade, e imitando, sem saber, o exemplo dos místicos de todas as religiões, entendeu que era primeiro possível, e depois desejável, passar do sofrimento no prazer ao prazer no sofrimento. Depois de milênios, depois de uma espera muito longa, de tanto tempo perdido, o sádico e o masoquista puderam finalmente se encontrar, se reconhecer como complementares e, assim, inaugurar a felicidade.
Esse caminho, tão breve, pelo primeiro dos caminhos de reflexão que nos são apresentados, aquele que partia do pressuposto de que a literatura, independentemente do sentido moral ou amoral de suas expressões, teria exercido ou ainda exerceria influência sobre a sociedade, a ponto de se tornar um de seus agentes transformadores, nos levou, creio, para uma conclusão pessimista e aparentemente não extrapolada: a de sua irresponsabilidade essencial. Irresponsabilidade, digo, no sentido estrito de que não será legítimo atribuir ao ciclo de As Guerras das Rosas, de Shakespeare, tomemos este exemplo, a culpa por um eventual aumento, em número e gravidade, de crimes públicos ou privados em geral, assim como da mesma forma não teremos o direito de acusar o autor de Ricardo III de não ter sido capaz de alcançar, graças ao que se espera que seja a lição de advertência e edificante de toda a tragédia, reis e presidentes mataram-se menos e os indivíduos respeitaram-se mais. Um ao outro e a si mesmo, deve ser adicionado.
Se a literatura é de fato irresponsável, no duplo sentido de que nem o bem nem o mal da humanidade lhe podem ser imputados, ainda que parcialmente, e, portanto, não é obrigado, nem a fazer penitência, nem a se congratular, a dar testemunho em qualquer tribunal de opinião, pelo contrário, atua, no seu ser, como um reflexo mais ou menos imediato do estado mental das sociedades e das suas sucessivas transformações, então a segunda via de reflexão proposta, aquela que, talvez com excessivo radicalismo, acabaria justamente por mostrar a literatura como um mero e obediente sujeito, mesmo em suas aparentes rebeliões, se interrompe quando ainda não tínhamos dado os primeiros passos, nos remetendo assim, ironicamente, ao ponto de partida, à bifurcação dos caminhos, à eterna interrogação sobre o que deve ser a literatura e como ela deve servir quando, na vida cultural dos povos, se instala o perturbador sentimento de que, tendo aparentemente deixado de ser, manifestamente deixou de servir. Embora o determinismo da conclusão possa humilhar certas vaidades literárias, mais inclinadas do que a modéstia aconselhariam a ampliar seu papel na república das letras e na sociedade em geral, acho que não teremos escolha a não ser reconhecer que a literatura não transformou ou transforma socialmente o mundo, e que o mundo é o que transformou e está transformando e não só socialmente, à literatura. Assim colocada a questão, em termos simples, objetar-se-á que depois de nos terem fechado as estradas, agora vêm fechar as portas e que, trancado neste círculo, vicioso e perverso como nenhum outro, o escritor, enquanto tal, não terá mais nada a não ser trabalhar sem esperança de realmente influenciar a vida do seu tempo, limitando-se a produzir os livros que a sociedade precisa para a diversão, sem a sua opinião e com os quais ele e ela estão satisfeitos, ou, no caso de ter sido reconhecido projetando-se no cosmos, como possuidor de talento suficiente, para escrever obras que seu tempo não compreenderá ou às quais será hostil, deixando para o futuro a responsabilidade de um juízo definitivo que, eventualmente certo e justo naquele caso concreto, incorrerá, infalivelmente, em erros de apreciação quando, no presente, for chamado a pronunciar-se sobre obras contemporâneas. Na verdade, o escritor quando escreve não está sozinho, ele também está cercado de escuridão, e acho que não vou abusar da minha limitada faculdade de imaginar se eu disser que mesmo a própria luz da obra - pouco ou muito, todos a têm cega. Essa cegueira particular não pode ser curada por nenhuma crítica, nenhum julgamento, nenhuma opinião, por mais bem fundamentada e útil que seja em alguns planos que lhe são apresentados, já que são emitidos, todos eles, de outro lugar.
Então, o que nos resta? Se as sociedades não permitem a transformação pela literatura, ainda que em alguma outra ocasião possa ter tido alguma influência superficial sobre as sociedades, ou se, ao contrário, é a literatura que é permanentemente assediada por sociedades como essas de hoje, que não exigem mais do que as variantes fáceis da mesma anestesia do espírito que chamam de frivolidade e brutalidade, como podemos, sem esquecer as lições do passado e as insuficiências de uma reflexão dicotômica que se limitaria a nos fazer viajar entre a hipótese, nunca satisfatoriamente verificada, de uma literatura agente de transformações sociais e a evidência de uma literatura, essa outra, que não parece ser capaz de fazer mais do que recolher a destruição e enterrar as vítimas das batalhas sociais? Como podemos, insisto, mesmo que provoquemos o escárnio das futilidades mundanas e o escárnio dos senhores do mundo, voltar a um debate sobre literatura e compromisso, sem que pareça que estamos falando de restos fósseis?
Espero que, num futuro próximo, não faltem respostas a esta pergunta e que cada uma delas, ou todas juntas, nos possam tirar da dolorosa e resignada paralisia do pensamento e da ação em que parecemos nos entregar. De minha parte, limito-me a propor, sem mais delongas, que voltemos rapidamente ao Autor, àquela figura concreta de homem ou mulher que está por trás dos livros e sem a qual a literatura não seria nada, não para nos dizer como escreveu suas grandes ou pequenas obras (muito provavelmente ele não sabe), não para que nos eduque e nos guie com suas lições (que muitas vezes ele é o primeiro a não seguir), mas simplesmente para nos dizer quem ele é na sociedade em que ele e nós estamos inseridos, para que ele se mostre todos os dias como cidadão desse presente, embora, como escritor, acredite estar trabalhando para o futuro. O problema não é que, supostamente, as razões e causas da ordem social, ideológica ou política que, com resultados estéticos tão variáveis em termos de intenções, levaram ao que se chamava literatura de compromisso, no sentido moderno da expressão, tenham sido extintas, o problema é, de forma mais grosseira, que o escritor, via de regra, deixou de se comprometer e que muitas das teorizações em que hoje nos deixamos envolver, não têm outro propósito senão constituir evasões intelectuais, formas de esconder, de nossos próprios olhos, a má consciência e o desconforto de um grupo de pessoas - os escritores - que, depois de se terem observado, durante muito tempo, como luz divina e lanterna do mundo, acrescentam agora, às trevas intrínsecas do ato criador, as trevas da renúncia cívica e da abdicação.
Após a morte, o escritor será julgado de acordo com o que fez. Vamos reivindicar, na medida em que ele está vivo, o direito de julgá-lo também pelo que ele é.
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Fonte: Bloghemia
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