Aprender a escrever à mão
na era do teclado
Memória e criatividade. Escritores
e crianças. Professores e alunos. O que é que estamos a perder quando
abandonamos o papel e a caneta?
Fábio Monteiro
Artigo publicado no site Observador
O que muda no nosso
cérebro quando escrevemos no computador? Diversos estudos científicos apontam
diferenças em relação à escrita no papel. Para descobrir até que ponto a
memória e a criatividade são afectadas pelo método de escrita, falámos com
crianças, professores e escritores.
Os primeiros “escritos” do
homem foram nas paredes das cavernas com a própria mão. Mais tarde, surgiram os
pergaminhos, as penas e a tinta. Depois, o papel e a caneta. E agora, os
teclados e ecrãs. “[Escrever à mão] faz-me doer o pulso e cansa”, diz Rafael
Santos, 10 anos, ao mesmo tempo que segura nas mãos uma consola de jogos
portáteis. Esfrega o dedo indicador da mão direita freneticamente no ecrã do
aparelho. Estava quase a perder o jogo, conta.
Rafael gosta de
velocidade: “Não gosto de esperar”. Desde que começou a utilizar o computador
na sala de aula, começou a pedir à professora para entregar todos os trabalhos
de forma impressa. A professora não aceitou. Rafael ainda é muito novo, mas já
se apercebeu que ao escrever com lápis e caneta demora mais tempo que no
teclado do seu portátil Magalhães. “Dá menos trabalho”, diz. Rafael é um caso
atípico: a maioria das crianças ainda é mais lenta a escrever num teclado do
que à mão. O mesmo já não se aplica aos adultos.
Em 2008, José Sócrates,
então primeiro-ministro, afirmou que o portátil Magalhães, distribuído
massivamente pelas escolas portuguesas, simbolizava “a ideia de que todos nós
queremos que as tecnologias de informação e comunicação estejam presentes em
toda a sociedade, mas principalmente no sistema de ensino”.
As salas de aula mudaram, a forma de
ensinar também. Não só em Portugal, mas como no mundo inteiro. Incentiva-se que
as crianças aprendam a programar, a linguagem do futuro para muitos. Neste
sábado, fez 60 anos que Alan Turing, o “padrinho” da ciência de computadores,
morreu.
Escrever à mão, o treino
da caligrafia, uns dos objetivos principais dos dois primeiros anos escolares
de qualquer criança deixou de ser encarado como algo central. Pelo menos, por
muitos pais. “Eu sei que na faculdade ele já só vai entregar trabalhos no
computador”, conta Irene Santos, mãe de Rafael, que afirma não estar preocupada
com este problema: o que é estamos a perder quando abandonamos o papel e caneta
pelo teclado?
Nos últimos seis anos, têm
sido publicados uma série de estudos científicos que falam na diferença que
provoca no cérebro humano escrever com papel e caneta ou num teclado. E todos
parecem chegar à mesma conclusão: escrever à mão tem uma ligação mais direta,
mais profunda, com o cérebro humano. Mais criatividade, mais memória. É um
processo mais lento que num teclado? Sim, mas necessário. Esta mudança poder
ter impacto estrutural no desenvolvimento das próximas gerações, lembram alguns
dos estudos.
Escrever à mão envolve vários sentidos: o cérebro
recebe um feedback das ações motoras, juntamente com a sensação do toque do
lápis e do papel. Escrever é um movimento, uma torrente que não para e impede
que as mãos estejam paradas, como diriam alguns escritores.
Anne Mangen da
Universidade de Stavanger, na Suécia, publicou em 2010 uma investigação que
revelava que diferentes partes do cérebro são ativadas quando a visão reconhece
uma letra caligrafada ou datilografada. Ao escrever-se alguma palavra à mão, os
movimentos envolvidos deixam uma memória na parte sensimotora do cérebro,
também conhecida como área de broca, o que ajuda a reconhecer as letras. Isto
implica uma ligação entre o processo de leitura e escrita e sugere que o
sistema sensimotor tem um papel no processo de reconhecimento visual durante a
leitura.
Uma das experiências foi
feita com dois grupos de adultos desafiados a aprender a escrever numa língua
desconhecida, consistindo em 20 caracteres. Um foi ensinado a escrever à mão e
outro através do computador. Depois de três e seis semanas da experiência, a
capacidade de reconhecer o caracteres foi testada. Aqueles que tinham aprendido
a escrever à mão saíram-se melhor em todos os testes. Submetidos a um TAC
indicavam que a área de broca estava ativada. Entre os que tinham aprendido a escrever
através do teclado existia pouca ou nenhuma atividade nesta área do cérebro.
“A componente sensimotora
é parte integral do treino para iniciantes [na escrita] e na educação de
pessoas com dificuldades de aprendizagem. Mas existe pouca sensibilização e
compreensão da importância de escrever à mão para aprender o processo, para lá
da própria escrita”, afirmou Mangen. Dentro do campo da psicologia, existe a
perceção que se presta demasiada atenção na mentalidade do sujeito. De acordo
com a investigadora, a perceção sensimotora tem hoje um papel muito mais
proeminente.
“Eles aprendem muito mais
rápido que nós [pais]”, diz Irene Santos, que confessa que às vezes é difícil
convencer o filho a largar a tecnologia e brincar “como quando era criança”. E
não é por falta de tentativas. Irene compra regularmente grandes blocos de
“papel cavalinho” para o filho “escrever, desenhar ou fazer o que lhe bem
apetecer.” Mas Rafael não gosta muito de treinar a caligrafia, nas suas
palavras é “aborrecido”.
Sandra Silva, professora primária na Escola
Básica nº4 de São João da Talha, faz com que a turma de quarto ano que
acompanha, todas as sextas-feiras, durante uma hora, faça um “esquema ou uma
pesquisa” no computador Magalhães. “Em casa só o usam para jogar”, diz, ao
falar da maioria dos alunos.
Para a professora
primária, prevê-se um aumento, cada vez mais, da escrita através dos
computadores, lembrando o caso da escola onde leciona. Com o desaparecimento
dos quadros pretos de ardósia e a passagem para os quadros interativos, o
primeiro ano do ensino básico vai passar a dar os básicos da escrita
manuscrita, mas depois tudo vai estar centrado num ecrã interativo, explica. “A
nova fornada [de alunos] vai muito para a era da máquina, do computador”, diz
Sandra. E apesar de gostar de incentivar os alunos a dominarem as tecnologias,
para a professora, a escrita no computador é algo “muito impessoal.”
“Eu consigo distinguir
cada um dos meus alunos pela sua caligrafia. É possível perceber a
personalidade deles pela letra. Como se estavam a sentir, se estavam
concentrados ou não”, explica. Talvez no futuro, a caligrafia se afaste das
escolas de forma mais definitiva, mas para já não. Podemos estar a mais do que
nos apercebemos agora. Por exemplo, se Steve Jobs não tivesse optado por
aperfeiçoar a caligrafia na faculdade, nunca teríamos os processadores de
escrita comuns a todos os computadores comerciais.
“Ao escreveram à mão, cada
um pensa melhor, ao seu próprio ritmo”, diz Sandra.
“As coisas são mais
simpáticas quando escritas à mão”
Imaginemos Fernando Pessoa
com um tablet na mão e um portátil na mochila, sentado numa das mesas da
esplanada do café a Brasileira, no Chiado, em Lisboa. Fernando Pessoa, o
escritor. Este vai tomando notas de ideias para poemas que lhe ocorrem no
tablet ou chega mesmo escrever o poema na totalidade. Porém, ao chegar a casa,
na rua dos Douradores, Pessoa apercebe-se que ocorreu um erro no sistema
operativo e nada do que tinha escrito ficou gravado.
A probalidade de Pessoa
lembrar-se do que teria escrito no tablet é muito inferior à que se tivesse
escrito num bloco de papel. A memória e a criatividade têm uma relação direta
com o movimento da escrita, de acordo com um estudo científico publicado em
Abril deste ano. O nome do estudo é, até, sugestivo: “The Pen is Mightier than
the Keybord”. (A caneta é mais poderosa que o teclado, em português.)
O primeiro livro escrito à
máquina foi o clássico “Tom Sawyer” do americano Mark Twain, publicado em 1876.
Desde essa data, não deixaram de surgir grandes escritores por causa de uma
mudança tecnológica. Lembremos as imagens de José Saramago, compenetrado no
computador a escrever a “Viagem do Elefante”, no documentário “José e Pilar”.
De que forma os teclados influenciam o processo criativo dos escritores
portugueses?
Pedro Mexia, poeta,
cronista e crítico literário, diz que não é correto falar de só “um processo
criativo” e distingue o que escreve entre coisas compradas (crónicas para os
jornais, por exemplo) e coisas não encomendadas (poemas, textos para o blogue
pessoal). Tudo o que é trabalho escreve no computador, pois esses textos têm
prazos a cumprir. Já a poesia, escreve no papel. “Fica mais acabado” e é “mais
espontâneo”, explica.
A literatura nunca lhe foi
um mundo estranho. Desde jovem que começou a escrever. “Foi tudo para a gaveta,
ainda não sabia bem o que era a poesia”, diz ao lembrar o início do seu
processo de escrita.
Enquanto crítico e
cronista, Pedro Mexia vai anotando temas que lhe ocorrem nas mais diversas
situações. Às vezes, se estiver na rua e não tiver papel à mão, anota no
telemóvel. Mas quando chegar a casa vai passar a ideia para um caderno. Tem de
ter ideias em stock para as crónicas que lhe são pedidas. “Não posso dizer que
conheça alguém [poeta]” que escreva poesia diretamente no computador, conta.
Mas lembra o caso de Vasco Graça Moura que, desde que surgiu o computador,
afirmou ter começado a escrever tudo aí.
“Pensar a liberdade é um bom critério para
a escrita”, diz Pedro Mexia ao falar da diferença do que é escrever uma
publicação para o seu blogue pessoal ou uma crónica para o jornal.
Um post pode ser “mais
hermético e obscuro” e uma crónica tem de ser compreensível a qualquer leitor.
Mesmo assim, admite, ainda existe uma certa mitologia dos “blocos de notas,
caderninhos e do café” ao redor da escrita.
É nesta precisa mitologia
que Francisco José Viegas, escritor, jornalista e ex-secretário de estado da
Cultura, se encontra. Todos os casos de polícia do inspector Jaime Ramos,
personagem central da obra do escritor, foram escritos à mão. Desde o primeiro
livro, o método de escrita de Francisco José Viegas tem sido o mesmo.
“As coisas são mais
simpáticas quando escritas à mão”, diz. Tudo que é literatura, Viegas escreve à
mão. Sai de casa, senta-se numa esplanada com blocos e cadernos e fica a
escrever uma tarde inteira se for preciso. Depois de acabado o primeiro
rascunho, transcreve o texto para o computador e aí trabalha-o. “Devia haver
computadores sem acesso à internet”, diz a rir-se.
Ao escrever à mão, o
escritor diz que é obrigado a uma “certa lentidão” para tornar a escrita mais
inteligível, o que por sua vez faz com que pense melhor. Francisco José Viegas
gosta de uma caligrafia bem delineada, da letra bem desenhada em tinta
permanente. Ver uma história crescer numa dimensão diferente da que o livro vai
ser impresso é uma vantagem, dá “uma certa inocência”, explica. E é com essa
mesma inocência que já o guiou por dezenas de manuscritos, que não se vê a
abandonar o movimento da sua mão, da sua força criadora, para um teclado.
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