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Elizabeth Caldeira Brito - [Escritora Brasileira]

A SINGULARIDADE DE SARAMAGO
*Elizabeth Caldeira Brito

O único escritor, a compartilhar conosco a língua portuguesa, premiado com o prêmio Nobel de Literatura, José Saramago, aos 87 anos, faleceu. Deixou-nos órfãos de seu universo sólido, criativo, polêmico e seu estilo único de ser singular.

Saramago publicou “Terra do pecado”, seu primeiro livro, em 1947. Depois ficou quase vinte anos sem publicar, após a rejeição do segundo livro pelo editor. Que permanece inédito. Afirmou que “não tinha nada a dizer”. Em 1966, quando sentiu “que tinha mais o que dizer”, voltou ao seu labor literário. Publicou três livros poéticos, para não mais cessar suas produções. Entre seus poemas destaco “Eu luminoso não sou”:

“Eu luminoso não sou. Nem sei que haja/ Um poço mais remoto, e habitado/ De cegas criaturas, de histórias e assombros./ Se, no fundo poço, que é o mundo/ Secreto e intratável das águas interiores,/ Uma roda de céu ondulando se alarga,/ Digamos que é o mar: como o rápido canto/ Ou apenas o eco, desenha no vazio irrespirável/ O movimento de asas. O musgo é um silêncio,/ E as cobras-d’água dobram rugas no céu,/ Enquanto, devagar, as aves se recolhem.”

Em seu estilo inconfundível e sua forma de contar, produziu 35 obras entre: romances, ensaios, poesias, crônicas, traduções, memórias, teatro, jornalismo e infantil. É o autor de língua portuguesa, da atualidade, mais traduzido. Mostrou ao mundo Portugal e Brasil. Seu livro “Ensaio sobre a cegueira” tornou-se filme. Sob o olhar brasileiro do cineasta Fernando Meireles, levou o Brasil ao mundo em algumas locações.

Por quase dois anos Saramago manteve o blog “Outros cadernos”, no site da Fundação Saramago, onde reunia textos éditos e inéditos. Nele postava artigos e entrevistas que concedia. Em sua última mensagem, aos internautas, demonstrou descrença e preocupação com os contemporâneos, pela falta de filosofia, reflexão e ideias: “Acho que na sociedade atual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de reflexão, que pode não ter um objetivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objetivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma”.

Humanista, Saramago organizou seus objetivos para além de sua vida. Com a criação da Fundação Jose Saramago, expôs a preocupação com o seu acervo e com o futuro da humanidade. Deixou expressos desejos pessoais, na declaração de princípio para a Instituição, com sedes na Espanha e em Portugal. Para ele a Fundação deverá adotar como norma e conduta, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Dedicando-se, especialmente, às questões ambientais e ao aquecimento global do planeta, “os quais atingiram níveis de tal gravidade que já ameaçam escapar às intervenções corretivas que começam a esboçar-se no mundo.” E continua, “Bem sei que, por si só, a Fundação José Saramago não poderá resolver nenhum destes problemas, mas deverá trabalhar como se para isso tivesse nascido. Como se vê, não peço muito, peço-vos tudo”. Sentencia Saramago.

Crítico feroz do ser humano e da sociedade, somente aos 60 anos de idade, alcançou o reconhecimento e a notoriedade por seu talento literário, questões polêmicas e engajamento político. Era filho e neto de analfabetos. Homenageou o avô quando recebeu o Prêmio Nobel, em 1998. Afirmou que “o homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever”.

Para garantir seu sustento, formou-se numa escola técnica. Contudo, recebeu mais de quatro dezenas de títulos de doutor “Honoris Causa”, concedidos por Universidades portuguesas e estrangeiras e ainda o prêmio Camões (em 1995), o maior das letras portuguesas.

Ateu convicto, um de seus desafetos era a igreja católica. Acreditava que “Deus, o diabo, o bom, o ruim, tudo está na nossa cabeça, não no céu ou no inferno, que também inventamos. Não percebemos que, tendo inventado Deus, imediatamente nos escravizamos a ele”. Afirmava que não era “um ateu total, todos os dias tento encontrar um sinal de Deus, mas infelizmente não o encontro”. Para ele todas as religiões são nocivas à humanidade.

A Igreja Católica em Portugal, pelo diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura, padre Tolentino Mendonça, lamenta a perda do mais nobre desafeto do catolicismo. Afirmou que Saramago “ampliou o inestimável patrimônio que a literatura representa, capaz de espelhar profundamente a condição humana nas suas buscas, incertezas e vislumbres.”

O tímido e discreto José Saramago, disse em entrevista à BBC, que sempre foi “uma criança séria, melancólica”. E ainda, que sempre teve tendência de “ver o lado negro das coisas” disse acreditar “que as pessoas nascem com isso”. Para ele o “que as vitórias têm de mal é que não são definitivas. O que as derrotas têm de bom é que também não são definitivas.”

Apaixonado pela vida, pelos livros e pela mulher, Pilar Del Rio, com quem se casou aos 63 anos. Ela, 25 anos mais jovem, conquistou-o, inicialmente pela idolatria a ele e a sua obra. Foi sua companheira até os instantes finais. Saramago afirmou em entrevista recente “que o mundo era tão bonito! Tinha tanta pena de morrer”.

Ele se foi de forma tranquila e serena. Deixou-nos com “pena” de nós mesmos. Acéfalos, perdemos um dos maiores referenciais literários da atualidade. Os mitos não morrem, eternizam-se em seu legado. Somos herdeiros do imenso patrimônio ético, moral e literário de José de Sousa Saramago. Estará em nós e nos que nos sucederem.

Namastê.

*É escritora.

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