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Helenice Maria Reis Rocha - (Um tigre na sombra - Obra Completa)


VERBO AMAR

Proscrevo o verbo amar
Traçando respostas
sem endereço
Batizo todo os avessos
dando nome ao que não tem
clamando pelo que não
vem
Proclamo o verbo amar
desavisando o desdém
Desvairada entre desapreços
não sou ninguém
além de um afeto vago
além do meu claro amor de
ninguém.


                                            CICATRIZ

Uma cicatriz na vala
faz florirem palavras
Uma fenda na fala faz
brotarem metáforas
A fala voa feito as
lendas nas bocas e baila
feito avisos na voz
A fala mancha o silêncio
das palavras.


MEUS DARDOS

Jogo meu olhar sobre
o horizonte como quem
lança pratos
refazendo minhas contas
na ponta do lápis
Mesmo em paz
deslizo meus dardos
sobre o ao longe
onde nem a saudade banca
praça
e vejo, cada vez mais claro
o dia
como quem conta barcos.


A TRAVESSIA DO GRITO

A travessia de um grito
inaugura lembranças
e dança como capim
fino dentro do
calor da tarde
fincando filetes de voz
e medo ao redor das
entranhas da tarde

Um grito na tarde
faz parar a viagem
da voz sobre o tempo.


A ABUNDÂNCIA DOS COLOSSOS

Sorriso mudo como
um prato vazio
mendigo a abundância
dos colossos
Vejo a placidez como
quem batiza a fria viração
interesseira das razões
Saúdo o tempo
Beijo esse velho amigo como
quem revira vísceras
e penso.


ALENTO

O papel branco me seduz
inventando murmúrios de
pensamento
falando absurdos que só
sua placidez branca de
papel engendra
Sou passageira do papel
branco
timbrando falas
inventando alento.


SEIOS DE TERRA

A tinta azul da caneta
não escreve os caminhos
do mar
Tão longe o mar
Lá no distante dos olhos
Minas é um caminho sem
mar escrito nas montanhas
Minas é um mar de
seios de terra.


O AR

Gravo no ar a giz a
palavra exata
cravando nas arestas
da paisagem minha
assinatura incerta
Só os loucos têm a baliza
fatídica da espera
Muito poucos sabem ao
sabor do alento
beijando as faces
das feras.


                                     SENTIDOS
As palavras respiram
arfando sentidos
Os sentidos sangram
nomeando a inessencial
mutabilidade do verbo
a necessária lapidação
do verso
Um verso é como um cristal
plagiando os alaridos da fala
O verso é um plágio que
               cala.


A NOITE

A noite entrando nas grades
da minha janela
entra jorrando com um
silêncio sagrado
sacolão de estrelas mudas
boiando no céu
Reverencio a noite como
quem borda um enxoval de noiva
tecendo pedaços de vida
               futura
beijando a menina que se
               fará mulher.


GEMIDO

Gemendo um sorriso avaro
danço em teclas de falas
declarando sulcos de vento
em pedaços de palavras
Meu sorriso antes claro
se resume nesses pedaços
que contam os caminhos das
ladeiras
e os becos das valas
Gemo e falo
com avareza ou em luz clara
a litania das rezas nas casas
o assobio das ruas
e a manhã clara
Mesmo gemendo
batizo a manhã
com as arestas da palavra.


DEGLUTIÇÃO

Engoli a noite em
um susto e fiquei
grávida de lua
Pari três ruas
lunares, metálicas
Em uma ancoro meu grito
em outra meu sono
na terceira rua meu canto.


O PENSAMENTO DO FIM

Encontrei uma felicidade anciã
nas despedidas
O teorema de quem vai nos
exponsais da morte se consome
inteiro nas falas e nas rezas
É bom ir como é bom ficar
É bom morrer como é bom viver
A anatomia da graça reside
nessa ciência
Morrer a cada instante retocando
a vida
Viver a cada instante retocando
a morte.


O JUÍZO

Como um tigre de seda
meu brio deságua
numa mansidão feroz
Com minhas garras de
seda arranho a cegueira
da justiça
Clamo dos dias a ausência
de gozo que vivi
e batizo as cinzas do
meu fogo antigo
Sou o reverso do Juízo
ardendo agora em
pira fria.


O MEU MANSO AMOR

Eu quero o meu amor
fiel como um encanto
Leve como um aceno
Ameno e permanente
Eu quero o meu amor brando
como um murmúrio
mudo como o mistério
manso
e de tudo me faça amante
o lento trilho do tempo
e de amor mesmo seja
a minha vida e morte.


A RAPIDEZ DOS SUSTOS

Com a rapidez dos sustos
desvendo um retrato frio
debaixo das rendas
Revelação rude da
presença de uma ausência
Meu pai morto sorri mais
vivo que nunca
e afinal me aprova
sua benção imortal
O gelo do passado esconde um
sorriso denso
marcando em cicatriz de imagem
recente presença.


A BENÇÃO DOS MORTOS

A benção dos mortos
configura os meus dias
Meu pai, minha tia,
minhas fortes avós
visível presença do
que foi um tempo bom
Tenho mãe, tenho irmãos
e a voragem dos minutos,
dos segundos me estendendo
a mão
A voz do tempo predirá
o molde da minha maldição
ou bem aventurança.


UM DESEJO DE PANO

Um desejo de pano trafega
minhas trincheiras
Forte como algodão e tenro
feito renda de bilro
invade minhas secretas
salas da imaginação
e cobre minhas mazelas
Tão belas as artes do desejo
Lambendo bêbado as
inseguranças do meu amado.


PLÁCIDO ALENTO

Plácido alento
varrendo voltas de segredos
tecendo enredos
molhando medos
Vejo no cristal dos olhos alheios
miragens e espelhos
Vozes nuas
e cruas carícias
de amantes
beijando a noite.


A BRANCURA DO VERBO

A brancura de um verbo
manso me corta as
entranhas dissecando
minha estranha vocação
de grito
Urro a disciplina dessa
mansidão
Feito leoa aprisionada
desdigo essa benção
amaldiçoando meu chão
urrando meus ritos.


O PAPEL

O papel corta as
minhas frágeis expectativas
de um verso exato
Prefiro o lado obscuro das falas
Prefiguro a sua voz calada
na incerteza dos meus
nãos
Bendigo a tua mão na minha
pele me calando toda
Loba em rendição.


DOR

Eu me calei sobre o seu grito
e hoje colho o seu silêncio
Eu escondi o seu cadáver
e hoje me escondo
das suas entranhas
Eu não falei sobre o
seu medo
e hoje percorro suas estradas
Perdoa, amado, amigo,
      confidente
a minha ira tardia.


DENTRO DOS MEUS OLHOS

Vejo dentro dos meus olhos
plataformas
passam nelas mulheres e
homens nus
de uma nudez generosa
cheia de tramas
O drama da nudez desfila
inteiro
crestado de ventos
batizado de esperas.


AINDA A DOR

A dor engendra cismas
de tremor e sombra
quando balbucio meu amor
A espinha da minha mãe
baliza minha existência
Nós de dor
insisto em amar o alarido
dos pardais
e sonho.


BATISMO

Batizo meu passo de
chão
Minhas horas são certas
Predigo o rumo das estradas
em quem semeia e volta
sobre a semeadura
Tão alvissareiras as semeaduras
Bem aventurados os estrategistas
      do grão.


A NOITE DA CANDELÁRIA

Punhais ferindo várzeas
os gritos nus das crianças
nas praças rasgam
o ventre da tarde
dilaceram a luz do sol
A Candelária jaz para
sempre
Rio de Janeiro, das ruas e das
valas
saúda o riso dos garotos
Os que vão nascer
te batizam.


OS MEUS SENTIDOS TRAÍDOS

Os meus sentidos traídos
me declaram inerme
Enfim a baliza do dia
solene incógnita de silêncio
e Sol
Hoje o dia singrou solteiro
sem o casamento dos parentes
que aparecem para o café
Prá sempre a ausência da tia
a suave presença da mãe
e o sol manso.


UMA PANTERA

Uma pantera voa fora da
minha janela rasgando o
céu
Ela rasga o azul e arranha
as estrelas
Quem vê panteras constrói
quimeras entre estrelas e
azuis
Quem gosta delas e
ama as feras não morre
antes do beijo delas.


O DIA

O dia passou, passou
p’rá sempre
Hão de passar as manhãs,
Hão de passar as tardes
e as noites.
Minha carne lassa lamenta
essa passagem e lança
um enigma:
Quem batiza as tardes
      e o tempo?


A PRECE INAUGURAL

A prece inaugural é aquela
que bendiz as lembranças
Mendigo a permanência
do que não vive colado
à minha retina
Bendigo a ausência do
que sofri na minha mágoa
Veja, você, o dia
segue mudo o seu ritmo
sem perguntar se
morri ou vivi hoje
Pertenço ao dia como
quem prediz as horas
e hoje, por exemplo
               sorrio.


OS SACRAMENTOS

De todos os sacramentos
o que mais me fascina é
o batismo
Dar nome é dar existência
desdizer a dor de não se saber
a quem chamar
De todos os sacramentos é o
mais fino
Mesmo assim não identifica o
ser a que se destina.


DESAMARRO PALAVRAS

Desamarro palavras
batizando sentidos
e proclamo:
amanhã serei livre
Hoje falsos amores torturam
minhas esperanças
ofendendo meu riso manso
Alcanço o fim das ruas
destoando nua dessas
ânsias vãs
desses amores bobos.


DAS ALVÍSSARAS AO DESTERRO

Das alvíssaras ao desterro
navego o verbo dos absurdos
e mereço uma comenda.
Ninguém me disse dos
apreços ou me fez a
carícia sonhada
Ainda assim não lanço
dardos e sim beijos
à minha passagem
e me deleito
A rua canta.


A VIAGEM DOS MANSOS

A viagem dos mansos
inaugura travessias brancas
tremulando paz nos
flancos do tempo.
Vento, vento, vento, traz
de volta o claro alento
da palavra franca
das sentenças nuas e batiza
a terra com o riso claro
das crianças.


VELHOS GEMIDOS

A poesia aguça meus velhos
gemidos
Busco o amigo, encontro o
ar silencioso das esquinas.
O vinho antigo não fecunda
minhas vísceras adormecidas
de silêncio
Minha irmã, às vezes fala
comigo
as vezes, não
Meu irmão mora do lado
calado
como quem dorme e não sonha.


ALEGRIAS PROVINCIANAS

Tenho alegrias provincianas
e hasteio gritos nos
antigos porões do entendimento
Tenho o desvelo das tias
em festa de quinze anos
Amo a mansidão das
montanhas
e sou só.
Apenas isto.


AS CASAS DA RUA

O vento destelhou as
casas da rua
Pássaros fizeram ninho
nelas
Minhas saias boiaram de
ar preso e ninguém
clamou ou jogou pragas
A graça permanece virgem
nos bancos das praças
e as ruas
intocadas.


NO FUNDO DO BRANCO

No fundo do branco mora
um habitante que hesita
em aparecer na borda
Desenhando o grito dos
mansos convido o estranho
habitante p’rá dançar.
Ele responde: não posso,
sou branco, sou branco, sou branco.
E morre sem gritar.


MINHA CARNE

Minha carne em túnel
aberta se oferta em
festa e flor
Mesmo assim tão deiscente
descreio da forte presença
do seu amor
Descreio porque sei da sua pressa
e conheço essa demora
que te faz perder a viagem.


VELHAS IMAGENS

Velhas imagens banem minhas
ternuras
Não sou séria nem
clara porque amo os
abismos e as valas
nem sou terna
Quero das medulas a fala
que alimenta o verbo
do verbo, a palavra.


RUDES ROCHAS

Rudes rochas perpassadas
de fósseis
o exílio das espécies lhes
contempla
Pobre humanidade, massa de
carne em movimento
alimento de rochas
e pó.


O AZUL DAS TARDES

O azul das tardes
me paralisa
desliza em minhas certezas
e me liberta
Todos os azuis ofertam cismas
batizam a nudez das coisas
definem
Os azuis não têm fim
O fim não tem azuis.


O DESTINO DA CARÍCIA

O destino das coisas táteis
é a carícia
A mão e o afago atravessam a
superfície morna
da distância
penugem de vidro que não
se quebra
tensão transparente de
calma e tato
Entre cordões de abismos
atravesso o caprichoso
caminho do amor
e cismo.


TEMPO ROUCO

Trafego as quinas de um
tempo rouco alisando
arestas e balbuciando
litígios
Assim me desavim
balbuciando meus gritos
incógnita
Não penso e não existo
para desafiar o cógito
desafinando
insisto.


A TARDE E AS ENTRANHAS


A tarde corta minhas entranhas
Estranho barulhos familiares:
o choro da criança ao lado
o ronco da minha mãe, a tosse
Queria estranhar o verbo
com algo sempre insólito
e novo batizando as vísceras
da palavra
Antes me calo no antes
do ser dito
maldizendo as bem aventuranças que
selecionam os benditos.


O CAMINHO DAS HORAS

Desafio o caminho das
horas
Ouço a litania nordestina
da empregada que
fala sem pausa
e bate no filho
Lamento
brasileirinho sofredor.
Amaldiçôo os maus bofes
dela
e sigo
Essa eterna ausência de
um destino.


SORRISO

Sorrio extraditando o
limbo do passado
ali onde a memória é
mudez e o tempo
canta o exílio
As horas apunhalam meus
risos e vejo: não sou
a simetria dos acontecimentos
e nem a exatidão
Minhas mãos já tremem.


O NÃO

A aridez limpa do
não banha a inocência
das urgências
Tudo é placidez de negação,
esperança adiada e
silêncio
Não sei quando vai passar
a caravana da incerteza
ou se já passou
Sei que os nãos
batizam essa paz que
me acalma
Nada tenho
Nada espero
Nada me aflige.


A NATUREZA

Divido a natureza em
várias partes
Tem a parte que canta
e a que grita
Uma delas dorme
a outra se agita
O silêncio da noite adormece
todas elas.


OS DIAS DA DOR

Sobrevivi aos avaros
dias da dor
e sobrepairei à doméstica
vocação para a quietude
A calma bovina de certas
mães me atribula
Nada disso o tempo escuta
e passa.


UM HOMEM

Lambendo os lábios
feito um boi o homem
agradece o farnel escasso
Antes quero a guerra
a luta
o grito
a justa sentença da fome
mas a tarde me entranha
os sentidos e
acalma esse gemido
de leoa.


OS RECADOS

Aonde brotam os recados
nascem os avisos
Das rendas do meu recato
tiro meu grito manchando
brancuras de abismos
Espero o que já veio
e atiro risos ao vento
maculando a nudez
do meu tempo.


O FOGO

Respirando fogo um lobo
morde as vísceras do tempo
O dia fica amarrotado
de vento
A noite engole o lobo
valente.


SENTIDOS NUS

Espremo a borda
das significações construindo
sentidos
Navego várzeas nas
pratas da palavra
Quem é de verbo nunca
se cala
Quem é de verso tece a
voz muda da fala.


A LUA BÊBADA

A Lua nua ri
Sua pele branca
inunda a rua
A Lua imunda canta
bêbada a viração
do dia enquanto a
noite navega as horas.


A ÚLTIMA POESIA
 
A próxima poesia sempre
me cansa porque nunca
alcança o olor dos acontecimentos.
Vem fora de hora e desalinhada
Não alcança o meu tempo nem
a fabulação dos meus afetos.
A última poesia é a
síntese tardia do
meu cansaço.


O CÓGITO

Não sei das maquinações
do verbo
ou do calor difuso dos
sentidos
Construo alaridos de falas
repetindo a voz das esquinas
A vida escorre mansa
entre as frestas das palavras
paro e penso
não sei se existo.


A PREPOTÊNCIA DO AÇOITE

Vencer a prepotência do
açoite
essa a pretensão dos justos
De onde vem o grito vem
o soluço engolindo
a trituração das feras
Nem só de mansidão se
faz a quimérica passagem
dos dias
O tempo também urra feroz
o eterno desfile das horas.


TÚNEIS DE VENTO

Entre túneis de vento o
claro riso da manhã se
anuncia
De cada manhã anunciada a
que mais me comove batiza
a própria anunciação
Não é a manhã do sol
mas o nascimento do grão,
na terra, nas mesas, nos corações
É a multiplicação dos
pães batizada de milagre
e cujo nome é pura
               matemática.


AS MATEMÁTICAS

As matemáticas me exaurem
Dou nome aos lucros,
não vejo a divisão
Pronuncio nomes chulos
me descabelo
e o imposto me crucifica
Não vejo os dias e as horas
só a chuva na janela,
batizando minha exaustão.


UM POEMA E UM SEGUNDO

A data entre um poema
e um segundo é
quimérica
não vale o balanço
das horas
Nos escondíamos no quintal
da casa do tio Fares.
Lá tinha árvores e terra
Isso vale um poema
e nada mais.


MINAS

As alianças defloram o
silêncio das conspirações
Atravesso o sinuoso imprevisto
das escolhas ao acaso
e grito os murmúrios das
esquinas
onde tudo é perigo e
cumplicidade
Entre o punhal e o afago
balanço meus dias.


A PALAVRA E A DÚVIDA

A palavra tinge os humores
transversos da dúvida,
balança entre trapézios e
abismos e mancha o verbo
de nada.
Cobrindo a vida de
enigmas brinca a
babélica imprecisão das
falas.


MEU OLHAR DE MEDUZA

Meu olhar de medusa desliza
línguas ácidas sobre a placidez
da cidade
Lanço maldições
Os homens ricos jamais serão
felizes, sobretudo os patrões
Graças a Deus minha mãe vive
mas não tenho filhos
e bendigo as próximas gerações
com um enigma
quem cantará os novos hinos?


CLARALINA

Claralina vivia sozinha
num barracão
Vendia salgados na
cidade
Hoje Claralina não tem
um nome no túmulo
Sua alma batiza as esquinas
nas ruas
Claralina, o silêncio das praças
te beija.


NOSTALGIA

Aonde andam as velhas falas
das moças e dos padres nas
tardes de domingo?
Eu queria aqueles docinhos
de festa, quando os anjos amenizam
as intempéries
Estou só
como uma sentença.


NADA MOVE AS MONTANHAS

Nada move as montanhas
Nem a fé, graças a Deus

Ondulando a linha do
horizonte as montanhas
amarrotam a terra

Minas, minas dos meus
encantos quem te faz
mais bela?

Elas

Mar de terra em
movimento
alento dos mansos
assinatura natural dos
conspiradores corações montanheses.


O SOL DAS HORAS

O sol das horas invade
meu quarto
Onde o gracejo dos
insensatos feriu meus
cernes?

Na mansidão forçada
ou no exagero das
convicções

Amo a dúvida
a descoberta e o
silêncio
O murmúrio perigoso
das conspirações.


GRITO SILENCIOSO

Meu grito silencioso
ondula sobre a calma
muda e mansa das horas

As vestes da minha voz
desatam um soluço antigo
rasgando um verbo rude
parado na garganta.

As asperezas me seduzem
A eterna atração da equação
dos fins
Os homens se odeiam calmamente.


BAILADO SOBRE OS COMEÇOS

Bailo sobre os começos
a eterna inexatidão
Tudo acontece sobre a
linha fina dos abismos.
O grito e o silêncio
O gemido e o riso
O certo e o avesso
Espero o consolo de um endereço
amigo e recolho as alvíssaras
frias dos parentes
A doce acolhida é o limite
das horas.


NOITE

Noite que dá nome ao
meu desatino
abençoa essa dama
desvairada que escarra
sobre o próprio destino
e geme
Não tenho homens ou amigos
Tenho o meu riso sério
e a minha intuição de
fim.


CANOAS DE TERRA

Canoas de terra ardem sobre
a minha íris nua
queimando as punhaladas
que atravessam minha
retina
São crianças nas ruas
cruas desfolhadas pelo
corte de metais frios
tombando inermes sob botas
marciais
A cidade vive
carnes de terra gritam queimando
os corpinhos nos quintais.


UM SOLUÇO DO AR

Um soluço de ar ressoa
na minha garganta
bailando gritos entre o recuo
e o silêncio

Um oxigênio difuso inunda
as minhas vísceras cansadas,
mudas e inermes
Estou desarmada e chamo
o atavio das horas quando
o cheiro de café batiza o
tempo.


AS LÁGRIMAS

As lágrimas fazem estradas
em minha pele sulcando
o útero da minha incerteza
Não sei do amor ou da vida
Respiro a herança dos
muito sós
Tive pai, tenho mãe, não
Tenho marido ou filhos
Guardo comigo o legado
da minha dúvida
Carrego no dorso da
minha coragem o resto
dos meus gritos.


LONGA VIAGEM

Essa longa viagem até
o dia de hoje merece uma
honraria
Sou Maria e trago uma
prenda

Quem quiser casar comigo
que seja de riso e
ame as lendas.


A PASSAGEM DO DIA

Um dia passa como um
rio atravessa a manhã
Manso, mudo
cantando o avesso das horas
A violência dos homens
sangra a face muda
dos dias
O dia não volta.


ENCARQUILHAR

Eu achei que ia encarquilhar
como os seres
que permanecem longo
tempo
Mas vejo retalhos do
fim e me visto de adeus
Amei as causas perdidas
as esquinas, os amigos e as
primas
Brindo meus irmãos com
um forte abraço
e a despedida.


MEUS AMIGOS

Cobri meus amigos de
ritos
Que coisa solene é a morte
quero ir como vim, sem
cerimônia, como quem toma
café na porta da cozinha
ou canta
Vou rever meu pai, meus tios,
conhecer meus ancestrais
e tremer um pouco na hora
da partida.


O WORLD TRADE CENTER


A paz desenterra sua
súplica nos escombros
do World Trade Center
Para sempre o fim na
minha retina
Não estou à altura da hora
Tenho medo
Temo os escombros, o grito
das vísceras me paralisa
Aonde o pai, o filho, o
amado, a amante se
escondem?
No suor da empresa
que castra
No horror do fundamentalismo
que castra
Os grandes negócios
prosseguem.


AS ROSAS

O mundo cai e minha
roseira permanece intacta
insistindo em assim ser
ainda longo tempo
Insiste no ofício de
ser roseira e vige
clamando o clamor
das rosas que é de
paz, paz, paz, paz,
ad infinitum.


O MEU CORAÇÃO EM TÚNEL ABERTO

A você que murmurou comigo o real deliquescendo minhas miragens na ponte do prazer quando eu nem sabia do meu desejo, perdida no delírio tanatológico dos tristes, eu, que amarrada, atada à circunstâncias de uma cama de hospital por suas mãos amantes, na tentativa de me obrigar à vida enganando thanatos pelos avesso e ao dever de eros, eu te digo, eu te amo.

A você, que docemente desceu comigo aos meus abismos inconfessáveis sem me julgar, eu te declaro, eu te amo.

Porque sou o seu mais precioso enigma. Eu te amo, mesmo que você não queira. Ciciei gritos anônimos na sua presença calma e postulei as minhas mais frágeis incógnitas e você me disse sim. Eu, que sou o seu mais incandescente enigma, sem motivo algum arquejei um sorriso triste diante da razão. Neste instante a sua mão de mago me mostrou o meu desejo, recôndito pássaro que mudo estava no ninho ambíguo da minha lógica vã. Eu te amo. Você me disse que não é o amor mas com a minha ternura humilde eu te digo. Você é o artesão dele.

A você, que me banhou nu no cárcere da mais pura inocência naquele banheiro coletivo de hospital, eu te digo. Eu te amo. Mas eu já estava amarrado quando uma espiral de desenganos me reduziu à mais plena mansidão que é a da morte. Bastava a sua ternura de depois desamarrando o grito enterrado nas entranhas desse avesso emudecido à força dos muitos nãos que assinalaram a minha longa travessia a você.

Mas mesmo assim eu te amo. Eu, que me lancei fundo no abismo da minha alteridade, emergi solene e calma ao som da sua tranqüila autoridade. Eu te amo. Ouça o silêncio que nos circunda.

Desamarre o nó górdico da minha existência que se precipita sobre você como uma sentença invisível, você ouvinte, eu vivente, barqueiros de uma mesma nau voante a caminho de uma estrada sem fim. Eu amo esse seu estranho silêncio diante da minha voz sonâmbula e me surpreendo destrinchando saídas. A delicada sombra do seu próprio medo se articulou junto ao meu desejo como um aviso de morte e então eu pude sobrepairar thanatos e me vestir de prazer. Não há nada, nem opressor ou oprimido, nem fantasmas ou gemidos. E você e eu, assujeitados diante desta libertação, estremecemos.

Eu te amo, seja você homem ou mulher. Quisera esta artezania do saber dentro das vísceras e tenho você, estrategista do meu grito, escultor do meu silêncio, me empurrando, mãe assexuada ofertando a sua cria ao mundo. Eu te amo. E desse amor tiro a seiva que me faz amante dos vários outros que me beijam a epiderme assinalada de gritos. Por que você recebe o meu amor com a majestade de uma esfinge e eu te amo.

E repentinamente você reparte comigo os seus mistérios e eu percebo toda a humanidade dos seus segredos mais terríveis. E te juro, me faço Prometeu em sua honra e jamais te entregarei, mesmo sob tortura.

Quando a multidão me virou as costas e você caminhou comigo a minha errância clandestina, destilei o veneno glorioso de ser única na massa inerme de vendidos. Eu te amo. Você me mostrou suavemente que o objeto do meu crime já havia morrido, então, porque a morte senão o prazer de desafiar o limbo de nossas existências num orgasmo múltiplo, cristal que espelha toda a humanidade numa só imagem. E eu descobri a festa de Dionísio numa noite e já entrando na ancianidade tive o susto glorioso que irmana todos os mortais. Eu te amo, por tudo que eu imaginei e que eu vivi do amor.

A você que me mostrou a miragem nua dos meus sentimentos reais espelhando a minha frágil ilusão de mim mesmo eu te digo, eu te amo.

A você, que me declarou solenemente o que eu considero o mais surpreendente dos cógitos contemporâneos — ama-te a te mesmo — eu te digo, eu te amo.

Porque eu estava nua no meio da intempérie e você elucidou os critérios da minha dor.

Eu que estava exausta de desatar os nós do vento sem encontrar carícia ou paz. Eu te digo, eu te amo. E essa minha catexia que te envolve como um manto se desdobra sobre vários outros tornando o meu amor sábio, o meu desamor necessário, a minha solidão povoada de um devir desnudado e calmo.


Helenice Maria Reis Rocha 
Todos os direitos autorais reservados a autora.

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