As
Semelhanças entre Guimarães Rosa e Manoel de Barros
Um dia desse, chuvoso, sem muita coisa para fazer,
passeando pelas páginas no facebook, uma fanpage (Eles por Eles), me chamou
atenção e despertou interesse sobre dois grandes nomes da literatura brasileira.
Encantei com a relação de alguns fragmentos de ambos, Guimarães Rosa e Manoel de Barros, e fui procurar o que tinha de
verdade nessa relação.
João Guimarães Rosa foi um dos mais importantes
escritores brasileiros de todos os tempos, era, também, médico e diplomata. Os
contos e romances escritos por Guimarães Rosa ambientam-se, quase todos, no
chamado sertão brasileiro. É considerado um bruxo das palavras por apresentar uma
linguagem repleta de arcaísmos e neologismos, enfim as mais variadas expressões.
“Fui médico, rebelde e soldado [...] Como médico,
conheci o valor místico do sofrimento; como rebelde, o valor da consciência;
como soldado, o valor da proximidade da morte..."
Manoel
Wenceslau Leite de Barros, entortador de palavras, poeta que tem
um abridor de amanhecer, nasceu em Cuiabá-MT, em 19 de dezembro de 1916 e
mudou-se para Corumbá-MS, onde se fixou de tal forma que chegou a ser
considerado corumbaense. Nequinho, como era chamado carinhosamente pelos
familiares, cresceu livremente, em uma fazenda no Pantanal.
O encontro entre Manoel e Guimarães se deu num barco, nas margens paraguaias do Pantanal sul mato-grossense e foi através de um verso de
improviso do rapaz franzino com o grande escritor.
“Andorinhas
encurtam o dia”
“Andamos para ver a roça de mandioca. Tatu estraga muito as roças por
aqui. Há muito tatu, Manoel? Eles fazem buraco por baixo do pau-a-pique,
varam pra dentro da roça, revolvem tudo e comem as raízes. Remédio
contra tatu é formicida. Fura-se um ovo, bota formicida dentro e esquece
ele largado no solo da roça. Rolinha passa por cima e nem liga. Mas o
tatu espurga, vem e bebe o ovo. Sente a fisgada da morte num átimo e sai
de cabeça baixa, de trote pra o cerrado, penando na morte. Homem é
igual, quando descobre sua precariedade, abaixa a cabeça. Já sabe que
carrega sua morte dentro, seu formicida. Essa é a nossa condição
– Rosa me disse. Falou: eu escondo de mim a morte, Manoel. Disfarço
ela. Lembra o livro do nosso Álvaro Moreira? A vida é de cabeça baixa?
Deveria de não ser – ele disse. Chegamos perto da metafísica. E
voltamos. Havia araras. Havia o caramujo perto de uma árvore. Ele disse:
Habemos lesma, Manoel. Eu disse: caramujo é que ajuda
árvore crescer. Ele riu. Relvas cresciam nas palavras e na terra. Rosa
escutava as coisas. Escutava o luar comendo as árvores. E, como é o home
aqui, Manoel? Eu fui falando nervoso. Ele queria me especular. O homem
se completa com os bichos – eu disse -, com os seus marandovás e com as
suas águas. Esse ermo cria motucas. Por aqui não
existem ruínas de civilizações para o homem passear dentro delas. Só
bichos e águas e árvores para a gente ver. Não têm coisa de argamassa,
ferragens destripadas do deserto, essas coisas que aparecem nos relentos
da Europa. Aqui é brejo , boi e cerrado. E anta que assobia sem barba e
sem banheiro. Rosa me olhou de esguelha”.
(Manoel de Barros, in
Gramática expositiva do chão, seção: Conversas por escrito (entrevistas:
1970-1989)
Iniciou-se naquele momento a amizade entre o poeta e o
seu ídolo.
Os indícios desta amizade estão na biblioteca Guimarães
Rosa, conservada na Universidade de São Paulo, onde há exemplares de
livros de Manoel de Barros.
Levei o Rosa na beira dos pássaros que fica no
meio da Ilha Lingüística.
Rosa gostava muito de frases em que entrassem
pássaros.
E fez uma na hora:
A tarde está verde no olho das garças.
E completou com Job:
Sabedoria se tira das coisas que não existem.
A tarde verde no olho das garças não existia
mas era fonte do ser.
Era poesia.
Era néctar do ser.
Rosa gostava muito do corpo fônico das palavras.
Veja a palavra bunda, Manoel
Ela tem um bonito corpo fônico além do
propriamente.
Apresentei-lhe a palavra gravanha.
Por instinto lingüístico achou que gravanha seria
um lugar entrançado de espinhos e bem
emprenhado de filhotes de gravatá por baixo.
E era.
BARROS, Manoel de. Retrato do artista quando coisa. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.
(Tatu-Peba)
"Quando escrevo, repito o que já vivi antes.
E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente.
Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo
vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser
um crocodilo porque amo os grandes rios,
pois são profundos como a alma de um homem.
Na superfície são muito vivazes e claros,
mas nas profundezas são tranqüilos e escuros
como o sofrimento dos homens."
Escreveram em gêneros diferentes, um em poesia e o outro
prosa poética.
No romance de Rosa, a poesia de Manoel de Barros
também pode ser lida em vários níveis. Existem pontos de leitura que tornam
indiscerníveis os limites das palavras rosianas, dos lugares manoelês.
Segundo Marcelo Marinho, "Rosa e Barros são autobiográficos na construção de suas obras". A originalidade lingüística do poeta e do escritor
dificulta, segundo o estudioso, a tradução da obra de ambos para outras línguas, “alguns tradutores quando não entendem o sentido da palavra, a suprimem”,
assegura Marinho, que estuda os campos semânticos, que são os campos de palavras
próximas, das obras de Barros e Rosa.
Uma curiosidade entre ambos, é que tinham o mesmo sistema
de trabalho, um caderninho de anotações (será que essas ferramentas de trabalho
são características dos grandes escritores?).
Manoel é um poeta que reinventa imagens e ele, Rosa,
a sintaxe. Esse talento para imagens, como "a formiga ajoelhada na
pedra" ou "quero passar a mão na bunda do vento", com um toque
surreal de concretude, começou a se mostrar maduro depois que conheceu Rosa e evidenciou-se em trabalhos
como "Gramática Expositiva do Chão", publicado em 1966. Essa similitude despertou a admiração de
Millôr Fernandes ("O homem mais genial do Brasil", segundo Manoel),
cujos textos o fizeram nacionalmente conhecido depois de publicar o "Livro de
Pré-Coisas". A partir de então o poeta começou a publicar com maior assiduidade: cinco
livros nos anos 90, seis na primeira década deste século.
Hoje Manoel é reconhecido nacional e
internacionalmente como um dos mais originais do século e um dos mais importantes do
Brasil. Guimarães Rosa, que fez a maior revolução na prosa brasileira, comparou
os textos de Manoel a um "doce de coco".
Rosa escreveu um único livro de poesias "Magma", publicado postumamente pela Editora Nova Fronteira.
Ganhador do concurso literário criado pela Academia Brasileira de Letras,
quando o autor assinava sob o pseudônimo “Viator”, em 1936. Apesar de ter
conquistado o prêmio, o livro ficou inédito por mais de 60 anos, sempre foi
considerado uma obra menor pelo autor de Grande Sertão: veredas, que durante
sua vida, não demonstrou qualquer interesse em publicá-lo, chegando a dizer em
entrevista:
"[...]escrevi um livro não muito pequeno de
poemas, que até foi elogiado. [Depois] passaram-se quase dez anos, até eu poder
me dedicar novamente à literatura. E revisando meus exercícios líricos, não os
achei totalmente maus, mas tampouco muito convincentes."
Só muitos anos após sua morte, em 1997, é que Magma veio
a público.
As
semelhanças entre Guimarães Rosa e Manoel de Barros adquiriram formas evidenciadas em suas
trajetórias literárias e pessoais.
A forma poética com que esses dois autores brasileiros
recolhem a essência narrativa dessa coletividade – do sertão, para Guimarães
Rosa e do pantanal, para Manoel de Barros – traduz-se em torno do seu
imaginário, das crenças e mitos que reavivam a memória cultural e identificam
sua maneira própria de se defrontar com a vida, o mundo, a realidade.
Alguns fragmentos de Manoel de Barros e Guimarães Rosa
Vida - coisa que o tempo remenda, depois rasga.
Guimarães Rosa - Estas Estórias
Eu gosto do absurdo
divino das imagens.
Manoel de Barros -
Menino do Mato
Se todo animal
inspira sempre ternura, que houve, então, com o homem?
Guimarães Rosa -
Ave, palavra
O menino tinha no
olhar um silêncio de chão
e na sua voz uma
candura de fontes.
Manoel de Barros -
Menino do Mato
Você ainda pode ter
muito pedaço bom de alegria...
Cada um tem a sua
hora e a sua vez: você há de ter a sua.
Guimarães Rosa - A
hora e vez de Augusto Matraga
Dentro dos
caramujos
há silêncios
remontados.
Manoel de Barros -
Tratado geral das grandezas do ínfimo
Quando a gente
dorme, vira de tudo: vira pedras, vira flor.
Guimarães Rosa -
Grande Sertão: Veredas
Pelo corpo
das latas podres
relvam rosas.
Manoel de Barros - Tratado geral das
grandezas do ínfimo
Esperava o
silêncio. Escutava muito ao redor de si. Mas nunca ouvia tudo;
não sabia nem
podia.
Guimarães Rosa -
Primeiras Estória
No meu morrer tem
uma dor de árvore.
Manoel de Barros -
O livro das Ignorãças
Espero que tenham gostado, o objetivo desse post foi
traçar algumas semelhanças entre o poeta Manoel
de Barros e o escritor Guimarães
Rosa e apresentar para os leitores da Revista Biografia.
Clique no link para conhecerem a fanpage ElesporEles
Ivana Schäfer
- Pedagoga com Habilitação em Orientação Educacional, Especialização em
Psicopedagogia e Cerimonialista. Sou Cuiabana de "tchapa e cruz", amo
minha terra, meu povo e a nossa cultura. Sou do Mato ....de Mato Grosso.
Página na internet:
http://espiacuyaba.blogspot.com.br/
11 comentários
Muito interessante.Estabelecer o paralelo é difícil; trabalho minucioso. Gostei demais!
Querida escritora , só o fato de vc ter gostado me deixa mto feliz, obrigada
muito bom, adorei, fiquei com mais vontade de historia poética….parabéns
Lindo demais! Sempre gostei muito desses dois meninos que brincam com as palavras. Não sabia dos seus (re)encontros, das suas escritas trançadas e você nos apresentou isso. Parabéns!
olá Elizamara,que bom que gostou , fico feliz, bjus
Olá Margareth Soares ,obrigada pelo comentário, tb amo os dois
Belíssimo artigo!
Agradeço por citar minha página: Eles por Eles
Nem preciso dizer da minha admiraçao por esses dois grandes nomes da nossa literatura. Fa e leitora assídua.
Muito sucesso para vc, Ivana Schäfer!
Grande abraço!
PS: Algumas palavras nao foram acentuadas porque estou com problemas no teclado.
Olá Suzi Montenegro , obrigada pelo comentário, tb sou fã dos dois e tb da sua pagina que já esta add na fanpage da Revista Biografia, bjus
Perfeito! Parabéns, amo literatura e poesia e você me apresentou um tema muito interessante pra se fazer um trabalho acadêmico, obrigado!
que bom que gostou Ricardo, bjus
Adoro estes dois autores. Mas gosto de acrescentar o Mia Couto e formar um trio fantástico de escritores que fazem sonhar através das palavras. Parabéns pelo trabalho!
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