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Ah, essas bolhas... [Tatiana Carlotti]

Ah, essas bolhas...

As bolhas começaram a cair do céu. Apoiei o corpo na janela, vento no rosto, suspiro de queda. Eram bolhas da boca de alguém e eu naquela abstinência de cigarros, tentando controlar o vício. Gostei. Da próxima vez, um punhado de detergente e o arame para assoprar a essência em bolha, deixá-la estourar ao acaso, prazer do ar em volta. 

Não demorou e a curiosidade: quem sopraria bolhas pelo prédio às três da manhã? 
Tento uma resposta. As bolhas se espalham intactas.

Suspeita imediata: a menina de óculos que nunca sorri. A janela do prédio é difícil de abrir, portanto, tem de ser obstinada. Talvez, meia nos pés, beira da cama, atrás da cortina. Outro dia, com o pai na lanchonete, retirava picles do sanduíche. O infeliz no celular. Separou também o hambúrguer. "Não quero mais". Bebeu quase meio litro de coca-cola. Quando deu comigo a observá-la, fez cara feia. Acendi o cigarro, fingi desinteresse. Não adiantou, desde então, me observa com propriedade. Não gosta de mim, nem eu dela. Apesar disso, crianças caem das alturas e ela, provavelmente, está bem próxima da janela. Munição para insônia, evito, não há de ser ela.

Talvez, uma das senhoras miúdas com quem troco opinião sobre o tempo. Há um enxame delas. Arrastam seus chinelos pelo corredor. Família em alguma parte, mansidão raivosa de cumprimentos roucos. Mágoas rechonchudas de uma bolha que nunca explode. Dona Sueli, Dona Tereza, Dona Firmina. Um arrepio no meu corre-corre de balzaca assumida. De repente, rugas me cobrem toda a face. Tento pegar uma bolha com as mãos, quase caio. Amanhã ligo para alguém e essa sensação passa. Meio da semana, estão todos em algum lugar e mais uma chuva de bolhas.

Será uma festa e não fui convidada? As universitárias e, aposto, um baseado pela casa. Outro dia, uma delas com acesso de riso na portaria. Gargalhada sonora pelos andares e o arrastar misterioso de móveis pelo meu teto. Não demorou e dei comigo rindo à toa. Osmose. Bolhas ocas, imensas. Dança alucinógena de meninas nuas e nem bebi, só duas taças de vinho para amargar a secura (e o frio por aqui). Fosse festa e eu saberia. Dizem que em festas, há música. Faz tempo que não ouço nada além desse desejo.

Agora, por exemplo, quase não escuto o lápis que rascunha um texto. É o meu vizinho de Sorocaba, primeiro ano de Economia, vocação secreta para artes marciais. Outro dia, errou no volume da TV, sussurro de foda preenchendo o corredor. Bafão no prédio! Não tivesse música no meio, nem teria desconfiado que era filme e talvez desse mais crédito ao meu vizinho punheteiro. Lets Get It On? Ah... Não fosse a síndica reclamar, o episódio teria ficado em segredo.


"Barbaridade", dona Judith no dia seguinte e o sinal da cruz no elevador. Então veio a frase: "solidão é coisa de dentro pra fora, Dona Judith". Olhei para o homem do nono andar. De baixo pra cima: sapato, calça, terno, camisa azul pálida, gravata apertando o gogó. Quando cheguei nos olhos, fiz que não era comigo. Eu hein... Família grande, todo dia o mesmo dia e aquela inquietação no corpo. Conheço o conto, frente e verso. Será ele, no meio da noite, pegando sobre a mesa o pote de sabão de um dos filhos? Abstinência de cigarros como a minha? 

Mais uma leva de bolhas para me confundir. Mas, cá prá nós, de que adianta adivinhar quem sopra se mais cedo ou tarde, ela estoura? E não é que uma escapa e vem em direção às minhas pernas? Bolha besta, desvirtuada. Chega tão devagar para morrer assim nos meus joelhos. Até parece um beijo, mas é vento. E o mistério permanece.


Tatiana Carlotti - Balzaquiana convicta e amante das letras. Pulsa no Centro de São Paulo ao lado do Balzac, seu gato. Acredita na força da delicadeza e na densidade da leveza. Ama bastante. Ainda sonha... Sites: SobremargenS.

2 comentários

geraldo trombin disse...

como sempre, ótimo!

Tatiana Carlotti disse...

Obrigada Geraldo, abraços!