Carla Dias. Nascida
em Santo André,
São Paulo, em 1970, assim que aprendeu a ler e a escrever, ingressou no
universo da poesia. Os primeiros livros aos quais teve acesso foram publicações
vendidas em bancas de jornal, das quais sua mãe era leitora assídua. Apesar de
terem colaborado com a sua autodescoberta enquanto leitora, os romances - que
eram direcionados ao universo feminino - não definiram o seu caminho pela
literatura. A obra que lhe abriu um leque de possibilidades literárias foi “Cem
Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Márquez. A partir daí, época em que descobriu
a biblioteca municipal de sua cidade natal, sua escrita foi influenciada pela
pluralidade e liberdade criativa.
Em
1986, ingressou no universo da música, iniciando seus estudos como baterista.
Em 1989, passou a ministrar aulas de bateria em diversas escolas de música de
Santo André, e neste mesmo ano, começou a trabalhar como recepcionista no
Espaço Cultural Camerati. No ano
seguinte, tornou-se professora de bateria neste mesmo espaço, que contava com
cursos de música e artes plásticas, além de estúdio de gravação.
Em
1990, deu continuidade aos seus estudos com a baterista Vera Figueiredo. Em 1993, começou a trabalhar no IBVF - Instituto de Bateria Vera Figueiredo,
onde se encontra até hoje, desempenhando a função de produtora de eventos. Um
desses eventos é o Batuka! Brasil International
Drum Fest, festival direcionado à bateria e à percussão, que vem sendo
realizado desde 1996, e figura na lista mundial dos mais importantes do gênero.
As três últimas edições foram apresentadas no Auditório Ibirapuera, na capital
de São Paulo (2009, 2010 e 2011).
Em
1994, tocou em diversos bares com a banda de blues Entidade Joe. No mesmo ano, foi classificada no V Concurso de Poesias da cidade de São
Caetano do Sul (SP), com o poema Transformação.
Em 1996, participou dos shows de lançamento do CD da cantora Mona Gadelha, em São Paulo, no Supremo.
Em
1997, publicou seu primeiro livro, o Azul,
uma coletânea de contos e poesias. No ano seguinte, participou da antologia Encontros,
organizada por Whisner Fraga e
publicada pela Editora Blocos, com o conto Queda. No mesmo ano, passou a ser cronista do site Crônica do Dia,
com o qual vem colaborando até hoje. Também neste ano passou a ser integrante
da banda Vergel.
Em
2001, ficou em segundo lugar no III
Concurso de Contos José Cândido de Carvalho, promovido pela ANE – Associação Nacional dos Escritores,
com o conto Voo Cego. Também através de concurso, integrou a coletânea Poesias
Brasileiras, com o poema Arquétipo da Rebeldia Desenfreada.
Em
2006, participou com poemas de sua autoria do evento Baião de Dois, em
São Paulo, ao lado do compositor, cantor e violonista Élio Camalle. Como o projeto tratava da
ligação entre música e poesia, Élio
Camalle musicou o poema Lar Suspenso
que fez parte do repertório do evento. Em 2007, participou como poeta da
programação cultural da Casa das Rosas, tradicional reduto literário de São
Paulo. Também apresentou o mesmo trabalho ao lado de Élio Camalle, desta vez denominado Baladas Perdidas & Versos Livres, no projeto Encontro das Artes, apresentado em São Miguel Paulista
(SP).
Em 2009, lançou o romance Os estranhos, através do ProAC –
Programa de Ação Cultural, edital de apoio à publicação de livros no estado de
São Paulo. Na resenha publicada na Folha de São Paulo, no guia Livros, Discos, Filmes, Nelson de
Oliveira diz: “Os Estranhos é um
romance delicado, feito de pequenos segredos e ásperas confissões”. No mesmo
ano, foi entrevistada no programa Livros
em Revista, da Clic TV.
m 2010, outro projeto da autora foi
selecionado pelo ProAc. O romance Jardim
de Agnes foi lançado em agosto. Em artigo publicado no Cultura News, site da Livraria Cultura, Sérgio Miguez diz “... ela
vem se sobressaindo numa cena repleta de talentos, é uma escritora para ser
levada a sério.”. Também foi publicado um vídeo da autora falando sobre o Jardim de Agnes. Carla também
participou, mais uma vez, do programa Livros
em Revista, da Clic TV,
apresentado por Ralph Peter, que escreveu em sua coluna, no jornal Empresas & Negócios, que a autora é
talentosa e flexível. Tanto Os Estranhos
quanto Jardim de Agnes foram
publicados pela [sic] editorial. Participou, com o conto Confissão, do E-Contos,
livro digital que reúne os selecionados do I
Concurso de E-Contos Ficções Editora e Gato Sabido.
Em 2011, a crônica 48, escrita para e publicada online no
site Crônica do Dia, foi publicada no
jornal literário Relevo, edição de
janeiro. Participa do livro Acaba não,
mundo, primeiro do site Crônica do Dia, e do qual participam 30 cronista
que colaboraram com o site.
Seu romance Estopim foi selecionado pelo ProAc, em 2011, e será lançado em agosto
de 2012. Assim como os outros romances publicados pela autora, a escolha da
capa foi realizada por meio de votação, pela internet.
Site oficial: www.carladias.com
Estopim: estopimlivro.blogspot.com
Jardim de Agnes: jardimdeagnes.blogspot.com
Os estranhos: Osestranhoslivro.blogspot.com
Crônica do Dia: Cronicadodia.com.br
Batuka! Brasil International Drum Fest: batukabrasil.com
IBVF - Instituto de Bateria Vera Figueiredo: ibvf.com.br
Poemas de Carla Dias
ARQUÉTIPO DA REBELDIA DESENFREADA
Carla Dias
Do livro “Através de mim... nós”
Vou hastear bandeiras emprestadas.
Pintar a cara, o corpo e os muros recém-pintados.
Fazer as malas quantas vezes for preciso
e nem sempre partir.
Vou me envolver com o latrocínio de ideias.
Quem sabe até me renda à música dos quartéis do mundo.
Vou plantar uma árvore no concreto.
Ter um filho objeto que me ensine a dar as ordens certas.
E escrever um livro dialético através do qual
tantos viverão a saga da busca pelo compreensão
daquilo que nem sempre importa.
Escorregarei as minhas mãos no ventre das horas marcadas
antes de esquecê-las em algum lugar que não seja meu.
Desviciar vicia.
Amarei vertendo as emoções mais pragmáticas.
Apanharei do corpo alheio a quentura que me afague
e falte nas noites mais contundentes.
E nunca terei vergonha de chorar, isso não.
Porque são as lágrimas que fazem brotar a inspiração
para que eu viva o que for...
Pelo o que for.
O coração às vezes bate em falso.
CONTEMPLAÇÃO
Carla Dias
Do livro “O Livro das Confissões”
surtei foi de fascínio
foi de ver os lábios ressecados serem banhados pela água do
copo
num simples gesto de secura
e de em seguida esquadrinhar a geografia do sorriso minado
foi de engolir a seco o até logo ainda que melindrando a
partida
e também de ter presenciado os olhos aguarem por dor de
amor de saudade
e de como negou se entregar a esse desfecho
temendo não mais voltar do abismo que ele oferecia
surtei foi de vontades
de alisar-lhe a face com as costas da minha mão vazia
que nelas houvesse o mapa que desse no carinho que
necessitava
que o gesto fosse de riqueza apaziguadora
e que do abraço vertesse essa poesia que jamais consegui
decifrar
compartilhamento
e o tempo fosse embalado pelos bons ventos
que chovesse girassóis
que desse frutos no jardim
que avermelhasse de pôr-do-sol esse dia
surtei também de tristeza
de parecer infinito e sem brandura esse caminho
por ter no bojo da minha alma a fadiga aninhada
de temer o começo do fim dessa benquerença de intensidade
que sei
dará em saudade que jamais partirá
e de velar a realidade na crueza das restrições
surtei de esperança
porque não há como negar a beleza do abrir os olhos
o gosto de tomar café quente em dia frio
as gargalhadas dos amigos depois de contarmos uma piada sem
graça
e porque me volta
e sempre
a lembrança de como fala tão manso
como se entoasse uma canção que ainda que repetida
soaria inédita
uma canção de afetos
CONVALESCENÇA
Carla
Dias
Do livro “As asas da borboleta e exorcismos diversos”
Envelhecer...
Livro de cabeceira: bilhetes
Cena preferida: fotografada
E arquivada em porta-retrato
Obra?
Horas despidas da bajulação
Da máscara
Mãos espalmadas
Mãos abraçadas
Vozes recolhidas
A lágrima despejada pelo sentimento
Ao
anoitecer
Xícara
de chá de ervas
Flores
flertando com o silêncio
Música
que marcou época: tantas
E o
perfume da madrugada
Embriagando
confissões
Contos de Carla Dias
AMOR,
FLOR, DOR E OUTRAS RIMAS DESAMPARADAS
Carla Dias
A casa foi partida em
duas: ela ficou com o quarto e a cozinha, um tiquinho da lavanderia e com meia
varanda. Na sua metade, estão os vasos de avenca e lírio-do-brejo, resquícios
da tentativa dele de construir jardim em apartamento. Elas parecem ter sede,
então ela vai até a cozinha - que é inteirinha dela que é viciada em café e
bolo de milho - e bebe um copo de água. Pronto... Matou a sede dela, mas quer
que as plantas se danem. Quer, na verdade, que as plantas saibam que ela
poderia, mas não dará de beber a elas. Então, pega outro copo de água,
escora-se à porta da varanda, e bebe o líquido transparente e gelado, crente
que as plantas estão assistindo a tudo, suas gargantas secas feito deserto.
Não pode pisar na
sala, tampouco no quarto de empregada. Lavar roupas é no tanque, porque a
máquina de lavar ficou do outro lado. Em meio varal, pendura coisinhas de
mulher, que se antes, ela acredita, assanhava o olhar dele, agora apenas
estabelece certo pudor e um sério mal-estar. Por isso mesmo dispõem a toalha de
banho enorme de um jeito que ele não possa ver suas roupas íntimas, a não ser
que ele queira muito.
Será que ele vai querer?
No quarto a cama é
king size, de uma vastidão imprópria para quem nunca pensou em ficar só. Ela
vira pra cá e pra lá, agarra os travesseiros de ervas, e o perfume que deles
exala é o dele. Deita-se de atravessado, as pernas apontando para um canto e a
cabeça para outro, o olhar vidrado no teto. Poderia ter dividido o quarto e
ainda assim teria espaço. Mas como seria se deitar ao lado dele sem poder, já
no sono começado, e como tem sido de costume há quase uma década, virar-se e
abraçá-lo até cair num sono profundo?
Ladra esse
amor
Ao meu peito em flor
E renasce silente
Depois se abre em grito
Escandalizando o paraíso
Com a sua nudez
A partilha foi feita
com fita crepe, num momento explosivo, em que ela, com as faces vermelhas e a
voz chorosa, exigia que ele entendesse o seu lado. E ele estava irritado, só
que de um jeito inédito pra ela, exigindo que ela ficasse calada para que ele
não dissesse nada que a ofendesse demais. Como todos sabem, conselho mais sábio
quando se trata de casais não existe: em briga de casal não se mete a colher.
Por isso que as irmãs dele e a mãe dela assistiam a tudo sem abrir a boca,
prontas para a fase dois, quando ambos desabassem. E desabaram...
Chororô à parte, olhos
injetados de falta de noite bem dormida e conclusões, ambos passaram a
respeitar profundamente aquela fita crepe de fora a fora do apartamento. Mesmo
quando os dias passaram e a moça da limpeza dele não entrava em acordo com a
moça da limpeza dela e ambas passavam pano úmido na fita, fazendo com que ela
se descolasse, ficasse meio solta, eles se mantiveram firmes. Ela bebendo café
frio, porque já não tinha mais disposição para fazer café mais de uma vez ao
dia. Ele gastando água até, ao lavar apenas uma camisa na máquina, só para que
ela ouvisse o barulho do que já não era mais dela.
Esse tal
amor
Tatua seus abismos
Na minha pele em flor
No meu coração partido
Crava o olhar no meu semblante
E sai de mim sorrindo
Houve essa noite em
que ambos pareciam zumbis caminhando pelo apartamento. Encontraram-se no
corredor, este divididinho certinho, para que cada qual pudesse caminhar do seu
lado. Porém, ao irem um de encontro ao outro, ainda que abaixando suas cabeças
para evitar a troca de olhares, suas mãos se tocaram. Suas mãos se tocaram como
se fossem amantes que não se viam há tanto tempo que seus corpos e suas almas
doíam de um jeito que nem dava para explicar.
Ela foi para o quarto,
deitou-se ao pé da cama, que já não suportava tanto espaço sobre ela, e chorou
baixinho, durante horas. Ele se deitou no sofá, entre lençóis remexidos,
apossou-se do controle da televisão como se estivesse empunhando uma arma, mas
não atirou. Ficou segurando o controle no ar, lágrimas escorrendo pelas suas
faces, em silêncio.
Ela aprendeu a andar
direito. Ele vivia tirando sarro dela por causa da sua mania de caminhar quase
que em zigue-zague. Mas agora era uma mulher treinada pelo que está disponível.
Foram noites e dias de caminhadas pelo apartamento, andando sobre a fita crepe,
um pé na frente e outro atrás, como se estudasse para se tornar malabarista e
andar sobre a corda bamba. Um equilíbrio necessário para que não se jogasse do
outro lado, berrando seus porquês, alardeando interrogações que já nem faziam
mais sentido.
Para ele, o que estava
fazendo era respeitar um pedido. Ela não queria que ele entendesse o lado dela?
E como fazê-lo sem defini-lo certinho? Na verdade, não imaginou que ela toparia
essa loucura de dividir o apartamento, deixando apenas como lugar comum o
batente debaixo das portas, evitando, assim, confrontos quando lá se
encontrassem, sem querer.
Ou querendo?
Porque ele se levantou
mais cedo que de costume, ficou espreitando a cozinha, lugar que, ele sabia,
era a primeira parada dela, porque acordava doida por um cafezinho fresco. E
qual não foi a sua surpresa quando olhou no relógio e ele já apontava quase uma
hora depois do horário usual dela. Pensou tantas besteiras, e aquela fita crepe
gritando “nem pensar em me ultrapassar!”, mas ele ultrapassou, “questão de vida
ou de morte!”, gritou de volta para a fita crepe insolente. E ao abrir a porta
do quarto, encontrou a cama feita, com o lençol tão esticadinho, que apenas um
pensamento veio a sua cabeça: “perdi?”.
Naquela semana, sentiu
saudade da palavra saindo da boca dele. Estranho como podemos sentir saudade de
coisas que jamais imaginamos que fariam tanta falta. Ela o observava,
discretamente, indo para lá e para cá, silente, cabisbaixo, o controle remoto
da tevê na mão, mas raramente a ligava. As camisas brancas dele se tornaram
cor-de-rosa, após uma lavagem mista. A sala ficou empapuçada de tantos
saquinhos de biscoito sobre os móveis, a alimentação vigente. O olhar dela
cambaleou e escorregou em lágrima. Saudade da palavra saindo da boca dele. Da
boca dele dizendo a palavra que a faz sorrir tão fácil. Saudade do sorriso, da
gargalhada e das brigas sem motivo.
Invade
esse amor as paredes da casa
Enquadra-se esse amor
Nas mãos amparadas
De cara com a dor
Em espirais e fermatas
Esse amor fecha a cara
As semanas passaram e
as plantas não morreram porque a empregada dela achou maldade demais cometer
tal homicídio e deu de beber às pobrezinhas. A empregada dele quis aplicar uma
nova fita crepe divisória e ele a impediu. Aquela, ao menos, foram eles que
colocaram. Ela parou de vez de dormir na cama, deitando-se sempre aos pés dela,
no chão. Café fresco? Dia sim, dia não, e olha lá! Ele largou de vez o controle
remoto, divorciou-se da televisão. Agora, deu de se sentar no sofá e escutar
seus discos modelo Long Play até a madrugada implorar para acabar.
Abandonaram-se em
companhia um do outro, criando esse espaço partido ao meio, como partido
ficaram seus corações. Com o tempo, aprenderam a conviver com a solidão
acompanhada, acostumando-se a espiar um a dor do outro, como se assim pudessem
manter uma ligação infalível.
Acontece que falível é
a felicidade, hoje eles sabem disso muito bem. E a fita crepe, que ainda é a
mesma, suja, descolando, porém persistente, é a única lembrança que eles mantêm
do dia em que, sem realmente desejarem, impuseram limites aos próprios
sentimentos.
Vê-se bem
que esse amor
Nasceu em dia de chuva
Escondeu-se debaixo do cobertor
E chorou até a lua
Colheu bálsamos para curar mágoas
E depois saiu: varado de sede e em lágrimas
POSTIGO
Carla Dias
Ao Marcelo Rubens
Paiva... Depois do Blecaute
Chove
folhas escaldadas pelo vento, este ventríloquo que sempre antecede o sussurro.
Hoje as coisas andam mais rápidas do que nunca, ainda que desconheçamos aonde
vai dar tanta gana. Tanto desespero por?
Nossos
braços repousam sobre o alicerce do universo e os olhares reverberam as emoções
mais furtivas. Pensamos em conquistas que sequer tentamos alcançar, mas nos
alçaram aos verbetes de paixão. Apaixonamo-nos por ideias em fogo, e planamos o
peito sobre as costas macias de alguém que nos possuía ao simples gesto de
ternura.
Todos
os sonhos vagueiam - em uníssono - pela imagem deste fim de tarde onde o sol
queima, mas não por mal. Ainda que a respiração seja mais tensa do que intensa,
resta-nos a beleza sufocante do verão que nos deixa zonzos com a sua
sensualidade desmedida. E ainda que busquemos, com veemência, os respiros do
inverno, sorrimos em agradecimento pelo amarelo tênue que transborda destes
dias abafados. Sinal dos tempos, meu bem-me-quer? Será que mal nos quer o
destino desatinado com a polvorosa deste arco-íris que brota do desconhecido? O
mistério lancinante do que provoca mutações.
Hoje
não somos mais tão bons quanto antigamente, ainda que de passado distante nunca
tenhamos provado. Mas tivemos tempo para ouvir nossos pais contarem suas
histórias, enquanto seus olhos eram invadidos por lágrimas e fé. Quem não tinha
fé a inventava, gritava por ela e tantas vezes, que a popularidade a cercou e
hoje a recebemos até através da televisão. Uma pop star. Manipulada. Às vezes,
necessária. Entretanto, não é a fé em si que nos prega peças e sim a forma que
damos a ela. A intolerância de muitos, a sapiência de outros tantos. Há fé para anjos e demônios, para domésticas
e políticos. Há fé para quem quiser levá-la para casa. Há fé na prateleira das
confusões provocadas pelo ser humano e também na delicadeza da benevolência que
ele cultiva.
A
imensidão nos invade. Há tanto espaço dentro de nós que seríamos capazes de
projetar o vasto nada do universo onde se penduram estrelas, planetas e
mistérios. Sóis e luas esperneiam pela vez de nos chegarem aos olhos, fitarem
nossa incapacidade de transcender aos tormentos bélicos da nossa tão visceral
natureza humana. E egoísta, e bela.
Uma
palavra ecoaria. Flerte. Não fosse o dó dessa piedade que dedicamos a nós
mesmos. Flerte. As vestes geográficas da terra mansa, mas que não amansa homem
ferido. E quem nunca foi açoitado pelas desordens e divagações? Vezes demais
repetimos a mesma palavra: medo. E não cansamos de nos dobrar a ela. Medo. Até
mesmo quando amamos a alma e devoramos o corpo existe o aborto da liberdade.
Prendemo-nos ao que virá. Atamo-nos ao
desmazelo de não conseguirmos escapar das prisões que cultivamos.
Autoaprisionamento.
Na
vigília da quase noite brotam amabilidades. E de humanos de fé esgarçada e
egoísmo acentuado, passamos a seres passíveis de contentamento. Gritamos às
mãos transeuntes – num tom de sortilégio, até então silente: nunca! E pedimos
que da maciez das coxas elas trafeguem até o coração batendo. Coração exilado e
confuso. Criando-se assim o trajeto impulsivo entre o que sentimos ao nos
curvamos uns sobre outros e o que evitamos sentir ao nos curvarmos uns aos
outros. Dedica-se a prisão a quem se atrever do outro tirar a si mesmo. Um
reflexo desabrochando inconveniências.
Nossa
marginalidade é bem na verdade um estandarte da confraria dos solitários.
Bancamos os rebeldes para não estarmos a sós com as próprias delinquências.
Reverberamos verbos que não conduzem às ações, mas sim às inibições. À teoria
de tudo que leva a um absoluto nada. Confabulamos sobre os ausentes, mas é em
busca da presença deles. Permitimos que nos abandonem todos, exceto esses
personagens que nos inspiram compor a poesia do mistério. Quem somos nós, afinal?
Onde habitamos às escondidas?
Talvez
não seja este sol findando em tom vertiginoso que vá nos receber com euforia.
Nem mesmo as folhas deslumbradas pela ventania. Não há como correr e pedir que
o definido nos espere. Em dias como este, ele se agarra aos mistérios.
Mancomuna-se ao zelo. Silencia. E nós, necessitados da compreensão de algumas
urgências, temos de debulhar paciência. Entregamo-nos aos devaneios.
A
valentia dos nossos dedos a se envolverem em cachos selvagens de cabelos
vermelhos, pretos, amarelos. Nosso veio de rebeldia plural, consanguínea. Nossa
irmandade requer o ritual da noite pérola. A tatuagem do deus fatal que se
perdeu em risos agradáveis, lançados pelos lábios de pessoas atípicas. Nosso
desejo? Viver, sem restrições, um desejo a alumiar a filosofia desengonçada
dessas férias que passamos sem a pressão dos dedos do destino em nossas
têmporas. Liberdade coloquial. Atrevimento colidindo com a virilidade do que
pulsa: a entrega. Estamos amarrados a uma perdição de nome estranho: paixão. E
tocamos a eternidade com tanta presteza que ela abandona a réstia de tempo.
Eternidade vulgo intensidade.
Lamentamos
aqueles que nunca provaram do líquido doce do beijo-amor, e da solidariedade
que há em cobrir o outro em madrugada fria. Do companheirismo de dividir o
copo, a cama, as ideias e de superar rótulo: gente. Do carinho enunciado em
suspiro profundo e gritante, apesar da falta de volume, pois esse tipo de som
se apresenta somente ao mais denso silêncio.
Tudo o que grita e vem de dentro de nós varre a certeza. E tem mais... A
coisa-paz que ficou ausente de nós até o quase esquecimento. Pois são os
pormenores que buscamos uns nos outros, ainda que nos fitemos com a dúvida a
tiracolo. Queremos sentir a respiração do outro em noites longas. A porta ser
fechada com a particularidade do ritmo que emana secretamente de cada um de
nós. O cheiro que faz parte da arquitetura da companhia.
Já
fomos para o mundo e fizemos guerras, íntimas e populares. Sangramos, em busca
da cor, da confusão e da morte. Do ideal. Do perfeito. Visitamos os arredores
do desespero e paramos aqui, despidos de rótulos. Vestidos de humanidade. E a
noite chegou, mesmo mediante a insistência em perpetuarmos a claridade
ostensiva. Chegou tão vasta que nos fez tremer e soprou a brisa que nos atentou
a olhar diretamente para a lua cheia contracenando com um céu tão calmo e
pálido, de um azul desorientado, como andam os nossos corações.
Fôssemos
tiranos, descambaríamos a maldizer a verdade alheia. Mas esbravejamos para
depois nos acomodarmos nas sutilezas. Somos passionais em relação a elas. Somos
encantados pela forma como elas figuram na biografia de todos nós. As sutilezas
enfeixadas ao desarrimo da realidade, transformando desventuras em um roteiro
de esperanças desinibidas, das que minam na alma da gente e impregnam nossos
olhares de delicadezas. Que nos confidenciam as brutalidades sofridas, apenas
para ilustrar – aos suspiros da poesia – a alquimia que bendiz a vida na sua
veemência, e não a sobrevivência dependurada nas faltas.
Hora
da partida. Voltaremos domesticados aos nossos lares tão distintos? Ou nos
permitiremos conduzir pela novidade desse conhecimento sobre nós mesmos? O que
carregaremos para as nossas salas e quartos será o que diferirá a vida da
morte. E o que transbordará e dará continuidade ao desanuviar maledicências
desferidas, enquanto driblarmos questionamentos necessários. É preciso
questionar, a fim de alcançar o conhecimento. É preciso tecer novos rumos.
Ainda
que, durante essa jornada, tudo conspire pelo avesso, seremos leves enquanto
for noite e em nós se aquietar a postura magnânima dessa lua que é tão. Como
tão sou eu e você. E vocês e todos os eus que se escondem dentro de mim.
Figurações. Lua cheia que parece estática, mas movimenta-se diante dos nossos olhos.
Ilusionista. Intuitivo pensamento que, acreditamos nosso, mas se derrama sobre
a catarse de outros. A coletividade do sentimento. Há quem a chame de paz. Há
quem a proclame labirinto. Há quem a corteje como abismo. Há quem simplesmente
a desconheça.
Nossa
morada ainda se conserva subterrânea e acoplada aos silêncios que construímos
vida afora. Nossos muros particulares, apesar de parecerem impenetráveis, rogam
pelo derruimento. E ansiamos que dos cacos, das lascas, dos feixes, da carne
doída, da alma fatigada, dos fragmentos paridos pós o declínio das instigáveis
coerências, seja criada a vitrine provocadora de fascínios. Que não mais
esvaziemos de nós mesmos. Que nos entreguemos à contemplação das nossas
querenças, mas assim, olhando adiante. Permitindo-nos vislumbrar a
transcendência.
O
que o amanhã nos reserva? Pergunta frequente e dolente, pois para ela não há
resposta inteira, apenas indícios. O que será que nos espera, além de nós
mesmos? Sabe-se lá. E eu, distanciada da urgência de saber sobre o amanhã,
verso sossego e seguro sua mão. Sinto-me em casa, sem ter dado um passo em
direção a ela.
E
o tempo nos abraça.
VOO
CEGO
Carla
Dias
Está
a bordo do seu momento mais tenso. Nervos retesados como pensamentos alugados
do dia que não foi dos melhores. Quantos insatisfatórios dias ainda haverá
nessa vida? Basta estar vivo para se deixar levar pelo império do abandono. Hoje
são mistérios que se acomodam nas suas veias, congelando sua alma de maneira a
conservá-la em dia. Ele tem nome, mas não se lembra de qual é, nesse tal
momento. Talvez o desejo seja o de perder a identidade.
Observa
as mãos dela escorregando pelos próprios quadris, desenhando em falso colorido
a curva de um corpo que veio para concretizar os seus bélicos desejos. Suor na
testa dele. Graça na dança dela. Não compreende como alguém tão terno caiu
assim em sua vida. Ela, uma mulher de gestos sutis, mas que não sofre de falta
de identidade, que está envolvida, apaixonadamente, consigo mesma, e com as
descobertas oferecidas pela vida. Lembra um pouco Greta Garbo quando o encara,
tentando seduzir o instante do qual homem nenhum gosta de perder a autoria: o da
conquista. É a forma como demonstra profundo conhecimento sobre si que a torna
tão letal. Ele fecha as mãos e as aperta tanto que as unhas deixam marcas
vermelhas nas palmas. Ela sorri, mas sem perder o ritmo. Ele controla a dor e
depois solta um suspiro de alívio – momentâneo.
Escolheu
aquela música por fazer parte do seu passado. Para ela, escutá-la e dançá-la é
despertar emoções arredias, mas ele não sabe disso. Ele pensa que qualquer
música é capaz de deixá-la desperta e liberta, sem as cruzes da vida sobre seus
ombros. Cada um deles, ao seu modo, mente sem deixar pistas.
Coloca
a mão sobre o seio dela, estacionando no gesto a busca pelo coração no compasso
das emoções que ele não sabe traduzir. É ao senti-lo bater descontrolado que
constata ainda estar vivo. Passa considerável tempo apenas olhando a própria
mão sobre a pele dela, aceitando que qualquer um, ao vê-los neste momento de
intimidade atravessada, seria capaz de compreender que tudo o que os liga
também os separa. Porque é fácil conhecer uma pessoa superficialmente. Difícil,
até mesmo perigoso, é fazer esse jogo no qual eles se esbaldam: conhecer o
dentro e o fora do outro e fazer de conta que são indiferentes a essa
intimidade. Ignorando a fome que há em se entregar totalmente e com certa fúria,
esquecendo facilmente da existência do lá fora. Porque aqui dentro tudo é
cálido, ávido, urgente.
Ele
pressagiou essa sensação atiçada. Será que ela suspeita de que ele sofre de
querença? A lembrança de quando a viu pela primeira vez o açoita e quase lhe
faz verter um sorriso, que ele engasga em nome da casualidade que eles tanto
prezam. E agora é fato, ainda que omisso, porque ele sente queimando no peito a
certeza: não conseguirá viver sem a presença dela. E a possibilidade do
despertar da ausência o torna frágil de um jeito que ele desconhecia.
Ela
quer encontrar as palavras certas, ainda que sejam desacreditadas do
absolutismo, mas não será no deslumbre do instante que as confiscará. Enquanto
roça sua pele na dele, sente borbulharem dentro dela todos os medos aos quais,
por tanto tempo, não deu atenção. Ele a toca. E ela sente: corte profundo, a
dor da dúvida neutralizando o prazer.
Não
tem o dom de saber as preferências dele de comida, bebida, livros ou discos,
mas sabe de cor como abraçá-lo, beijá-lo, tê-lo preso nas entrelinhas do seu
querer e entre as suas pernas. Sabe que pode passar fome, sede ou a total
escassez de cultura, mas não há como sobreviver à inexistência dele sem
integrar a total ausência do mundo que há na sua presença.
Não
é prudente pensar no amor como acessório gracioso. O amor faz da graça um
objeto obsoleto, um autorretrato cômico e brutal do perigo, e fortalece os
destemperos do epílogo de qualquer história. Como aquela que do amar demais
tirou o temer ferozmente não ter. Exageros arbitrários.
Ele:
acarinha o rosto dela como que se apoderando da beleza perfeita. Ela: sorri
porque conhece o modo exato de fazê-lo e que tanto gozo nele provoca. A
totalidade é um confronto. Ele ama amá-la. Ela ama amá-lo. Ele odeia amá-la.
Ela odeia amá-lo. O que fazer com o maltrato do perfeito? Como bradar com a
imensidão do que é febrilmente indecifrável? Ele: sente a fragrância do
desespero se apoderar do seu corpo. Ela: sente o que ele sente.
Ponto.
Enquanto
envolve a mulher que ama, também pensa que teria sido melhor não tê-la
conhecido. Ele não sente culpa por pensar assim, tamanha é a dor que a
possibilidade de um dia perdê-la causa. Ela pensa que se ele não existisse
seria tudo diferente, ela não se atreveria a sentir algo tão denso, tão singular
por outra pessoa. Ele diz que o perfume dela é inconfundível, enquanto gostaria
de não mais senti-lo. Ela diz perder-se no tom da voz dele, e deseja nunca mais
escutá-la, enquanto está dormindo, tentando alcançar outros sonhos.
Então,
ela volta à dança, gestos vibrantes. Ele torna a observá-la dominado pelo
deleite. As coisas se ajeitam dentro deles. Sombras adormecem. Eles são
novamente apenas crias da intensidade do que sentem e ignoram o que os cerca.
Um voo cego comandado pelos requintes do amor brutal, da violência da
possessão.
Felicidade?
Dizem uns que ela é tranquila, agradável. Pensam eles que ela é pretensiosa,
cheia das artimanhas. Ainda assim, doce felicidade essa que os açoita, sangra,
aprisiona.
Carla Dias.
Todos os direitos autorais reservados a autora.
Um comentário
Quanta honra conhece-la mesmo que virtualmente, tens um enorme potencial e alegra-nos com suas belas palavras.
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A FACULDADE DA PAZ, PRESIDENTE ATUAL LÉA LU
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