A beleza como mercadoria e negação humana [Elismar Bezerra Arruda]

A beleza como mercadoria e negação humana.

Lembro-me de uma aula, ainda na graduação, quando uma colega relatava a história de um aluno descendente de orientais, criança pequena, que se olhava no espelho e dizia detestar os seus olhos. Imagino a angústia de alguém, criança ou adulto, ver-se feia, detestar-se e não poder refazer-se fisicamente no sentido de ficar “bonita”. Em “Americanismo e Fordismo” Gramsci, ao analisar o processo produtivo norte-americano que se estruturava no início do século passado, nos fala do tipo humano que estava sendo forjado para atender as necessidades daquela economia política. Taylor e Ford tentavam construir um tipo de trabalhador conformado ao ritmo da máquina, avesso às reinvenções político-culturais do viver para além da fábrica; esse era um padrão de beleza operária que, concebido e disseminado na sociedade pelos capitalistas, pretendia estabelecer que o que não tivesse aquela estética fosse tratado como errado, inadequado: feio.

Pelos olhos vemos o mundo, mas, como cantava Elis: “as aparências enganam”, de modo que nem sempre o que vemos é o que verdadeiramente é. Belezas e feiuras não são “naturais”, são construções humanas. Assim, os padrões ou conceitos de beleza dos povos originários, por exemplo, são muito diferentes dos do mundo burguês; neste a beleza tornou-se um elemento de grande valor negocial. Concebida como um negócio que se materializa em uma miríade de produtos, que vai do xampu ao carro de luxo, a beleza pode se incorporar ao indivíduo que tem recursos para comprá-la, de maneira que quem adquire aqueles produtos “faz-se” bonito pelo seu consumo. Sem esse poder, o pobre só pode apresentar-se socialmente, isto é, diante do padrão de beleza burguês, como o que não é bonito.

Entretanto, uma das grandes façanhas do capitalismo ao longo do século passado foi saber incorporar as massas trabalhadoras à sua lógica, à sua visão de mundo; assim, para que as massas não se sentissem absolutamente excluídas da beleza, criou mecanismos que estabeleceram diversos “subpadrões” de beleza, todos determinados pelo consumo de mercadorias. Dessa forma, fez com que o “não branco” e “não rico” pudesse “fazer-se” não feio, isto é, mais ou menos bonito, a “meio caminho” da beleza absoluta; embora esta esteja reservada para os que podem consumir o que está no topo da sofisticação (muito distante, portanto, do poder de consumo da massa trabalhadora), é sempre propagada como possibilidade real para os indivíduos, especialmente para os que estão “a meio caminho”.

O mundo capitalista é o mundo do comércio. O mundo do comércio está fundado na relação comercial inaugural da compra da mão de obra pelos patrões. É essa relação que determina as demais relações comerciais; entretanto, a sociedade em geral não consegue perceber a compra da mão de obra (o Trabalho) pelos capitalistas (os patrões) como o ato inaugural da trama exploratória capitalista, de maneira que não vê o seu trabalho como mercadoria e só percebe o comércio depois da mercadoria produzida pelo trabalho. A máquina negocial do capitalismo é insaciável, assim é porque, sem negócios que se sucedam e se ampliem continuamente, ela minguaria até a sua desaparição; por isso o discurso incessante dos capitalistas da necessidade do crescimento econômico a qualquer custo, inclusive de vidas humanas – sim, o capital e seus proprietários não tem compaixão, tem voracidade por lucros. Daí a necessidade de mais trabalho para mais produção, para mais mercados, para mais negócios, para mais lucros.

Assim, a beleza e a feiura são mais que meros conceitos, de fato, afiguram-se praticamente como conteúdo do Ser Social do mundo burguês contemporâneo na forma de um padrão estético determinado pela mercadoria. Então, embora pareçam conceitos universais, imparciais, desinteressados, só podem ser entendidos se relacionados ao processo geral da remuneração e reprodução do capital, portanto, materializados nas mercadorias. Dada a perversidade, a injustiça com que o capital é remunerado e expandido, graças à exploração ascendente do trabalho, trata-se de uma beleza absolutamente feia, porque não se refere à beleza humana em si, mas a uma estética que nasce e se desenvolve em função das necessidades vitais do capital. Eis porque a mercadoria (o xampu, o esmalte, a camisa, o sapato, a tinta para o cabelo, etc.) ganha mais importância que a pessoa: a beleza, de fato, está na mercadoria e não no Humano.

Ao submeter o Humano (a massa humana) à coisa, à mercadoria, os capitalistas conseguem mais que a reprodução e ampliação do capital, conseguem afirmarem-se como dirigentes, como governantes de uma massa humana que se sente incluída naquele mundo pelo consumo, tendo, portanto, a ilusão, a sensação de que “faz parte”, de que “é”. É neste sentido que precisamos entender a malandragem perversa da empresa capitalista ao abrir, no seu padrão “branco” e rico de beleza, um espaço para os que não se encaixam nesse padrão, mas, que, com certa capacidade para consumir suas mercadorias que embelezam, podem ficar “bonitos”, ou mais ou menos “bonitos”. A capacidade da burguesia de governar a sociedade se revela nesse processo complexo, pois, ao criar subpadrões de beleza para a massa trabalhadora em geral, com os seus diversos níveis de padrão de consumo, acabou absorvendo, conformando, ao mundo do capital, grande parcela dos trabalhadores pobres, de modo a, inclusive, fazer essa massa se sentir realizada econômico-socialmente, reconceituando, assim, o significado da emancipação econômico-social.

Premidos pelo cativeiro do salário em que vivem, os trabalhadores sofrem as consequências estéticas dessa condição imposta pelo capital. Seus corpos, os territórios em que vivem, seus pensares degenerados pela alienação, etc., constituem uma totalidade capitalista que se lhes afigura como feiura, entretanto, é sentindo, vivenciando concretamente essa realidade que, contraditoriamente, os trabalhadores poderão perceber e compreender o caráter histórico daquela feiura e a necessidade de uma nova beleza – em negação à usufruída pelos que lhes impõe aquela condição. Porque conhecem os rigores e dores de uma feiura que é histórica, a superação dessa situação pelos trabalhadores, superação da lógica do capital (do consumo dos produtos que atribuem beleza aos que os portam ou consome), só pode ser obra dos próprios trabalhadores, cuja realização se materializa com a elevação de uma nova lógica, de uma nova concepção de mundo, à condição de governante: a lógica do Trabalho. Trata-se, enfim, de nova concepção de beleza, que se materializa não no cosmético nem no carro de luxo, ou na camisa da moda, mas no homem e na mulher novos porque generosos, solidários, companheiros. Eis porque a elaboração dessa obra, a sua urdidura, se afirma, per si, como beleza que vai se fazendo cada vez mais bela no próprio “fazimento”; portanto, uma obra humana absolutamente em aberto e, assim, humanizadora.

Fonte:

Revista Sina