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XIS−TUDO [ Raul J.M. Arruda Filho ]

XIS−TUDO

Qual é a palavra mais bonita da língua portuguesa? Essa é uma daquelas perguntas que aceitam trezentas respostas diferentes. Todas corretas. Ou erradas. Depende de quem precisa sair dessa sinuca de bico. De qualquer maneira, preferências pessoais precisam ser respeitadas. Cada indivíduo tem o direito de escolher o que lhe faz feliz, mesmo se for apenas um aprendiz. Faz parte.

A formação da língua portuguesa, na variante falada no Brasil, lembra uma colcha de retalhos. Somos lexicalmente híbridos. No mínimo. Tudo começou com as tribos bárbaras que viviam no Condado Portucalense e na Península Ibérica. Quando os romanos unificaram a região − pela força das lanças e espadas −, trouxeram na bagagem o latim vulgar. Essa mistura, acrescida de um pouco de grego, formou aquilo que, na falta de melhor expressão, chamamos de língua portuguesa. Com o passar dos séculos, novos acréscimos: espanhol e árabe.

Quando as caravelas de Pedro Álvares Cabral avistaram o Monte Pascoal, em 1500, não imaginavam a riqueza lingüística de alguns grupos indígenas (especialmente Tupi e Macro−Jê). Com a colonização de Pindorama, algumas palavras e expressões foram sendo adicionadas ao léxico.

Os maiores acréscimos lingüísticos datam da época da escravidão. Milhares de africanos foram seqüestrados de suas moradias e trazidos à força para o Brasil. Como falavam línguas e dialetos muito diferentes (Iorubá ou Nagô, Quimbundo), a contribuição que forneceram ao português é impressionante e inestimável.

Por algum fenômeno difícil de explicar, mesmo com todos esses acréscimos, a estrutura básica do português não se modificou. Ao contrário de algumas regiões sul−americanas, colonizadas por espanhóis, um dialeto crioulo não se formou.

De qualquer forma, não é possível ignorar que o Reino de Portugal, em decreto de 3 de maio de 1757, proibiu o uso da "língua geral" nas escolas. Só era permitido ensinar o português.

No século XIX, algumas regiões do país receberam novos contingentes imigratórios: alemães (Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio Grande do Sul), italianos (São Paulo, Rio Grande do Sul), japoneses (São Paulo e Paraná). Grupos menores ou menos concentrados também foram sendo absorvidos (árabes, polacos, russos). Todos esses povos contribuíram para modificar a língua portuguesa, tornando−a mais rica, mais sonora, mais inteligível.

Na modernidade, outras línguas "civilizadas" também deixaram suas marcas no idioma falado no Brasil. No início do século XX, o francês era a nossa segunda língua e isso resultou em centenas de palavras e expressões que foram sendo adaptadas e agregadas ao vocabulário popular. Depois da década de 70 do século XX, o interesse se voltou para o inglês. E as contribuições, muitas delas aportuguesadas, são incontáveis.

A língua portuguesa é um organismo vivo. Passível de transformações e mudanças a qualquer instante. Dicionários são apenas registros factuais dessas mutações. A gramática não passa de um conjunto de regras lingüísticas, feitas a posterior, para explicar esses fenômenos.

Figuras como Policarpo Quaresma (personagem de um romance de Lima Barreto) são ridículas exatamente porque não entendem os mecanismos históricos de (de)formação de um idioma. Falta−lhes a compreensão de a "pureza" não existe. Se consultarem um dicionário etimológico, antes de emitirem opiniões "nacionalistas", talvez descubram que palavras "legitimamente" brasileiras como otário, bacana e cambalacho não são legítimas. São todas originárias do lunfardo (uma gíria falada em Buenos Aires). Há outros exemplos, milhares deles, comprovação mais do que óbvia de somos mestiços, inclusive linguisticamente. E que não será a aplicação legislativa do preconceito que modificará as condições culturais do país.

Outra coisa: não existe um modo "correto" de falar ou escrever. O que importa, inicialmente, é a comunicação. Precisamos saber expressar aquilo que somos e porque o somos. Depois, e só muito depois, é que se deve adaptar o discurso dos indivíduos ao discurso uniforme da norma culta, que é, basicamente, a linguagem do dominador. Entre o povo e o opressor existem muitas diferenças (que não são visíveis para quem não as quer ver!). A destruição das desigualdades ainda vai demorar. E não será oprimindo o povo com o império da gramática que a situação econômica, social e política do Brasil vai mudar!

Todo esse passeio histórico e teórico está conectado com um propósito muito simples: anunciar que Xis−tudo é uma das palavras mais bonitas da língua portuguesa! Xis−tudo? Fala sério! Xis−tudo nem sequer é uma palavra dicionarizada!, reclamará fulano, sem esperar por alguma explicação. Pois é, os dicionários e as explicações muitas vezes nos confundem.

Seguindo a regra de Jack, o estripador, vamos por partes. Quando o entendimento de uma palavra de origem estrangeira não ocorre adequadamente, uma reação cultural − natural na língua portuguesa − é a de adaptá−la, usando como parâmetro a fonética. Assim, no aportuguesamento, o som prevalece sobre a grafia. Não é surpresa que a palavra cheese (em inglês, queijo) seja pronunciada com um som que se aproxima de xis. O que assusta é outra coisa: o estranho emprego da metonímia, uma figura de linguagem que consiste em designar um objeto por palavra designativa doutro objeto que tem com o primeiro uma relação de causa e efeito (Dicionário Aurélio).

A palavra sanduíche (sandwich, no original) designa um alimento em que duas ou mais fatias de pão são intercaladas com queijo, presunto, carne, ovos, etc.. No Brasil, o sanduíche Chesse−burguer (hambúrguer com queijo) sofreu um processo de contração, onde o elemento que identifica o sanduíche (burguer, redução de hamburguer) é ignorado pelo falante. A população, sem entender os mecanismos de formação lexical da língua inglesa, preferiu adotar o genérico chesse, ou melhor, Xis. Em seguida, por exercício metonímico, Xis se tornou sinônimo para qualquer tipo de sanduíche.

Xis−tudo é um sanduíche gigante, composto por todos os ingredientes disponíveis em lanchonete ou restaurante. Por outra prática de transformação semântica, também designa a sociedade plural, multirracial, multicultural e alegre que constitui o Brasil.

Enfim, Xis−tudo somos nós!

 
Raul J.M. Arruda Filho, 53 anos, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”. 
Todos os direitos autorais reservados ao autor.


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