A última entrevista de Jorge Luis Borges
O escritor morreu alguns meses depois de ter concedido a
entrevista ao jornalista e apresentador Roberto D’Ávila, em 1985
“Não criei personagens. Tudo o que
escrevo é autobiográfico. Porém, não expresso minhas emoções diretamente, mas
por meio de fábulas e símbolos. Nunca fiz confissões. Mas cada página que
escrevi teve origem em minha emoção.”
Jorge Luis Borges nasceu em 1899
na cidade de Buenos Aires, Argentina, e morreu em Genebra, Suíça, em 1986.
Entrelaçando ficção e fatos reais, Borges concentrou-se em temas universais, o
que lhe garantiu reconhecimento mundial. É considerado o maior escritor
argentino de todos os tempos e um dos mais importantes nomes da história da
literatura.
Na entrevista, que foi concedida
em julho de 1985 ao jornalista Roberto D’Ávila, Jorge Luis Borges fala sobre a
infância, a cegueira, a morte. Afirma que o fracasso e o sucesso são
impostores. E traduz o seu amor pela literatura em uma frase: “Se recuperasse a
visão eu não sairia de casa. Ficaria lendo os muito livros que estão aqui, tão
perto e tão longe de mim”. Borges morreria menos de um ano depois de ter
concedido a entrevista. (Carlos Willian Leite)
Fale-me de sua infância, de suas
memórias...
Minhas primeiras memórias são da
biblioteca de meu pai. Não me recordo de uma época em que não soubesse ler e
escrever. Meu pai era professor de psicologia e me disse que a memória começa
aos 4 anos de idade. Aprendi a ler e escrever entre os 3 e 4 anos. A biblioteca
de meu pai era essencialmente de livros ingleses. De modo que quase tudo que li
na vida foi em inglês e depois em outros idiomas, já que, em 1915, fomos para
Genebra e tive que estudar francês e também bastante latim. Depois disto, eu me
ensinei alemão para ler Schopenhauer. Mas antes passei pela poesia e pelos
expressionistas alemães: Johannes Becher, Wilhelm Klemm, Kafka e outros. Quando
perdi a vista como leitor em 1955, para não “abound in loud self pity”, para
não abundar em sonora autocomiseração, como diz Kipling, empreendi o estudo do
inglês arcaico. Depois estive duas vezes na Islândia e estudei um pouco do escandinavo
antigo. O islandês é a língua mãe do sueco, do dinamarquês e, parcialmente, do
inglês. Agora pensei em estudar japonês ou chinês, que são idiomas tão
estigmatizados.
Das leituras da infância, o que
mais lhe impressionou?
“As Mil e Uma Noites”. Livros de
diferentes épocas da vida de Kipling, que comecei a ler quando criança. Sempre
gostei muito dos atlas e das enciclopédias. Curiosamente, continuo a comprar
livros. Não posso lê-los. Aqui tenho, por exemplo, uma excelente enciclopédia
italiana, a Garzanti, tenho duas edições da Brockhaus, alemã, e uma edição da
Britânica. Gosto muito. Acho que é a melhor leitura para um homem ocioso e
curioso como eu. Infelizmente perdi a vista. Se eu a recuperasse, não sairia
desta casa. Ficaria lendo os muito livros que estão aqui, tão perto e tão longe
de mim. Mas perdi a vista. Diversos países me convidam para dar conferências.
Vou agora à Califórnia, à Nova York e depois à Roma. Depois volto à Roma no fim
do ano para falar de meus livros. Continuo a escrever. Que mais posso fazer? É
que não gosto do que escrevo. Nesta casa não encontrará um só livro meu. Por
que quem sou para ficar ao lado de Euclides da Cunha, Camões ou com Montaigne?
Não sou ninguém! Continuo a adquirir livros porque gosto de estar rodeado por eles.
Como quando era menino, já que minhas primeiras lembranças são de livros e acho
que minhas últimas o serão também. Quanto à minha memória, a única coisa que
consigo lembrar são citações, mas, dos fatos de minha vida, me esqueci. As
datas, não me lembro de nenhuma. Tenho lembranças de meus pais a quem adorava,
dos meus amigos. Agora meus amigos estão embaixo da terra.
E as lembranças dos amores?
Agora estão menos vivas. Lembro-me
de uma frase muito triste de Emerson: “Life itself becomes a quotation”. “A
própria vida se converte numa citação.” Tenho a memória cheia de versos em
tantos idiomas. E continuo escrevendo. Bem, escrevendo é uma metáfora; ditando.
Como passo boa parte do tempo sozinho, vou povoando esta solidão com projetos
literários. Não vão durar muito porque, aos 85 anos, não se tem muito por vir.
Entretanto minha mãe morreu aos 99 anos com o terror de chegar aos 100. Eu
tentava convencê-la de que os 100 são uma superstição. Mas, mesmo assim, o
número 100 a
apavorava. Quando fiz 80, achei horrível. Espero não chegar aos 90. Eu
preferiria morrer esta noite. Agora não, porque quero conversar um pouco com
você. Quando vocês se forem, eu morro. Eu gostaria. Assisti a várias agonias no
curso de minha excessivamente longa vida. Minha mãe acreditava em Deus, eu não.
Todas as noites lhe pedia que a levasse durante o sono. Uns meses antes de
fazer 100 anos morreu, que era o que queria. Ela acordava de manhã e chorava ao
ver que não tinha morrido durante a noite e se preparava para outro dia.
Como é a cegueira?
Uma das primeiras cores que se
perde é o negro. Perde-se a escuridão e o vermelho também. Vivo no centro de
uma indefinida neblina luminosa. Mas não estou nunca na escuridão. Neste
momento esta neblina não sei se é azulada, acinzentada ou rosada, mas luminosa.
Tive que me acostumar com isto. Fecho os olhos e estou rodeado de luz, mas sem
formas. Vejo luzes. Por exemplo, naquela direção, onde está a janela, há uma
luz, vejo minha mão. Vejo movimento mas não coisas. Não vejo rostos e letras. É
incômodo mas, sendo gradual, não é trágico. A cegueira brusca deve ser
terrível. Mas se pouco a pouco as coisas se distanciam, esmaecem... No meu
caso, comecei a perder a vista desde o momento em que comecei a enxergar. Tem
sido um processo de toda minha vida. Mas a partir de 55 anos, não pude mais
ler. Passei a ditar. Se tivesse dinheiro, teria uma secretária, mas é muito
caro. Não posso pagar.
Nunca ficou desesperado por causa
da cegueira?
Não. Como foi um processo lento,
não houve um momento patético. Mas se uma pessoa perde a vista de repente,
pode, inclusive, pensar em suicídio.
O sr. já pensou em suicídio?
Quando era jovem, sim. Mas quando
a pessoa é jovem, quer ser o príncipe de Hamlet, Byron, Edgar Alan Poe, ou
Baudelaire. Mas agora procuro a serenidade. As pessoas são muito boas para mim.
Claro. Sou um velhinho inofensivo. Quem vai me molestar? Não pertenço a nenhum
partido político. Sou um velho anarquista spengleriano. Principalmente neste
país, as pessoas se interessam muito por política. Eu não. Mas tenho minha
consciência tranquila. Falei e escrevi contra Perón. Minha mãe, minha irmã e um
sobrinho meu estiveram presos. Ameaçaram-me de morte, mas eu sabia que, se
alguém lhe ameaça de morte, você não corre nenhum perigo. Depois vieram todos
esses governos. Falei contra o terrorismo, muitas vezes, contra a ditadura
militar. Depois escrevi contra uma possível guerra com o Chile. Contra a
invasão das Malvinas, escrevi dois poemas e uma milonga, que foi proibida pelo
governo.
Pode recitar?
Não me lembro. Tenho um poema que
se intitula “Juan Lopez y John Ward”. São dois rapazes, um argentino e um
inglês, que poderiam ter sido amigos, mas que se matam na guerra. Tenho uma
milonga que se chama “Milonga del Muerto” sobre um soldado que morreu na
guerra. As pessoas riem um pouco dessa guerra, mas toda guerra é terrível, até
mesmo uma pequena como essa. Morreram 2000 argentinos e 500 britânicos.
Conversei com sodados que me disseram que se tivessem um rifle na mão teriam
matado seus oficiais. Os sargentos quando viram, fugiram e deixaram os
soldados. É que não eram soldados; eram recrutas. Era gente trazida das
províncias semitropicais do norte e os mandaram às cercanias do Polo Sul
combater soldados verdadeiros. Eram todos rapazinhos de 18 ou 20 anos, ainda
que houvesse uma superioridade numérica grande.
Quais foram as grandes sensações
de sua vida?
São as grandes sensações da vida
de todo homem. O amor, a amizade, a leitura, o gosto por escrever, embora não
goste do que escrevo. Nesta casa não há livros meus nem sobre mim. A partir dos
30 anos, não li uma única linha que se escreveu sobre mim. Sei que há
bibliotecas inteiras, mas não li nada. Acho que deve-se viver para o futuro.
Quando publico um livro, não sei se teve êxito, se está vendendo. O que disse a
crítica. Meus amigos sabem que não devem falar do que escrevo.
Por que?
Porque é incômodo falar da própria
pessoa. Prefiro falar de outros autores. Deve acontecer o mesmo com outros
escritores. Há uma frase muito bonita de Kipling que fala sobre o fracasso e o
sucesso. O fracasso e o sucesso são impostores. Ninguém fracassa tanto como
imagina. Ninguém tem tanto sucesso como imagina. Além disso, o que importa o
sucesso e o fracasso? No fim das contas, todos seremos esquecidos, o que aliás
é melhor. Não creio em imortalidade pessoal. Meu pai dizia: “Quero morrer
eternamente — corpo e alma”. Segundo a Bíblia, depois dos 70, tudo é aflição.
Mas eu diria que antes também. Não é preciso fazer 70 anos para conhecer a
aflição. Segundo a tradição, os 33 são a idade perfeita, porque é quando morre
Cristo e nasce Adão. Adão nasceu aos 33 anos. Na Idade Média, houve uma
discussão muito séria sobre se Adão tinha ou não umbigo. Adão não pode ter
umbigo porque não nasceu de mãe, porque foi criado do pó por Deus. Mas, ao
mesmo tempo, se lhe falta o umbigo, é imperfeito. Então Adão tem que ter
umbigo, embora não tenha tido cordão umbilical. Isto se discutiu com toda
seriedade durante muito tempo. Havia teólogos encarniçados em ambos os lados.
Sir Thomas Brown, um escritor do século 18, diz “The man without a navel lives
in me”. “O homem sem umbigo vive em mim”; ou seja: “Adão vive em mim; sou
também o primeiro homem”.
O sr. leu muitos de livros?
Não. Li muito poucos. Sempre reli
os mesmos livros. Não conheço a literatura contemporânea. Desde que perdi a
vista como leitor em 1955, não li nada de novo.
Mas quando era menino, na
biblioteca de seu pai, lia muito?
Não lia muito. Folheava os livros.
Não creio que tenha lido quase nenhum livro do princípio até o fim, salvo
livros de filosofia. Romances li muito poucos. Para mim, o romancista é Conrad.
O sr. leu pouco, mas sua vida é a
literatura. A realidade para o sr. não importa muito. O que importa são as
sensações?
Se eu tivesse interesse na realidade
europeia, leria jornais. Nunca li um jornal na vida. Pra que lê-los? É tudo
bobagem. Só falam de viagens de presidentes, congressos de escritores, partidas
de futebol. Por isso gostaria de recuperar a visão para poder folhear um livro,
escolher o que vou ler ou omitir. Quase não li romances na vida, fora Joseph
Conrad, que para mim é o romancista. Fracassei com grandes romances, com
Zachary, com Flaubert.
Mesmo com “Cem Anos de Solidão” o
sr. não foi até o fim?
Com “Cem Anos”, não. Completei no
máximo 50 anos. Mas é um excelente livro. Gostaria de conhecer o autor.
Não o conhece?
Não tive oportunidade. E
possivelmente nunca terei. Ele vive na Colômbia, não? Estive duas vezes na
Colômbia. Todo mundo foi muito amável comigo, sobretudo porque sou um ancião
inofensivo. Inimigos pessoais não tenho. Às vezes me ameaçam de morte, mas por
telefone, o que não tem nenhuma importância. Se uma pessoa quer matar a outra,
não avisa porque seria um imbecil. Bem, os assassinos são imbecis.
Queria mudar um pouquinho a assunto.
Queria que o sr. falasse do amor.
Ocupou tanto lugar na minha vida,
que ocupa pouco em minha obra. Estive casado por três anos e compreendemos que
o único modo de continuarmos amigos era a separação. Mas agora também não somos
amigos porque não a vejo nunca. Não sei se morreu ou não.
Quer dizer que o sr. acha que o
casamento mata mais que o amor?
Três anos de casamento foram um
pouco onerosos.
Fale-me de seu sentimento por
Buenos Aires.
Mudou tanto a cidade... Já não a
conheço... Nasci aqui no centro de Buenos Aires: Rua Tucumán, quatro ou cinco
quadras daqui. Toda a Buenos Aires era de casas baixas com terraços, pátios,
campainhas manuais. Só havia algumas casas altas perto da praça do Congresso. A
cidade toda tinha casas com pátios, poços. Sempre havia uma tartaruga no fundo
para comer os bichos: uma espécie de filtro vivo. Buenos Aires mudou
completamente. Minha mãe se lembrava desta rua sem calçamento.
Mas o sr. é um homem universal,
tem todos os sangues...
Não tenho tantos. Meu bisavô era
lisboeta. Era Borges de Moncorvo, uma cidadezinha de Trás-os-Montes. Depois
tenho uma maioria de sangue espanhol, uma avó inglesa, algum sangue
judaico-português e, muito distante, algum sangue normando dos Bittencourt, uma
família de Rouen, noroeste da França. Devo ter ainda algum sangue escandinavo e
isto é tudo. Mas eu trato de ser cosmopolita, de ser digno deste planeta.
A sua genialidade vem de que lado?
Não tenho genialidade de nenhuma
espécie. Sou apenas um pequeno escritor sul-americano, um mínimo argentino.
Fonte: Revista Bula
3 comentários
É como estar num sonho. E ler e reler é sonhar muitas outras vezes. Aplausos ao eterno Jorge Luis Borges.
Amei a entrevista do Borges e outras matérias da Revista Biografia.
Parabéns!
Muita Boa a entrevista e demais artigos da Revista Biografia.
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