Ave Maria
O meu sonho sempre foi ser freira. Chamar-me Maria. Mas, nasci com asas, sem ser anjo. Posso me aproximar de Deus de outra forma. Consigo subir até Sua casa. Antes de a noite acordar pela manhã, as irmãs libertam a respiração do convento pelas janelas: “Tum-tum”, “Tum-tum” é o que escuto o coração do convento pulsando em reza. Ah, se não fosse ave, seria freira! Como é encantador ouvir os passos delas flutuando pelo piso frio do convento, como se voassem sem abrir as asas. Logo começam as xícaras a tocar piano e eu sinto o aroma de café.
O convento é um grande ninho onde moram anjos em forma humana. Gosto de sobrevoar os telhados e sentir o calor que irradia pelas janelas. O próprio sol visita as dependências e depois se esparrama pelos pátios e frestas. Fico tão emocionada que arrulho de encantamento.
Às vezes, sinto saudade do cheiro verde das matas e voo até lá. Como é extasiante sentir odores tão diferentes. A maresia que salga as narinas. O café quente do convento. Os perfumes de banho dos humanos que andam de um lado para outro como formigas trabalhadeiras. Sou mesmo uma ave privilegiada, testemunho a história desse povo todos os dias. De um lado, as doces beatas; do outro, o salgado mar de botas molhadas. O vento traz folhas da mata que acariciam os rostos dos homens. O chafariz respinga lágrimas de felicidade desse solo abençoado.
Outro dia, muitas nuvens se aproximaram do convento. Extasiada, deitei-me sobre o telhado e permiti que as águas doces me banhassem de todas as minhas decepções. Eu aceitei quem eu era. Como havia pessoas humanas e animais, havia eu, ave. Tantos similares e tantos diferentes, convivendo com árvores e mares, chuvas e risadas. Únicos e realizados. Filhos da natureza. Pais de nossos sonhos.
Eu sempre quis ser freira. Mas nasci ave. Acho que a vida foi muito generosa comigo. Não sou uma pomba qualquer. Sou uma ave brasileira, alegre como uma cigana, viajando entre o mar, a mata e a cidade, em um tapete mágico movido a vento. Sou uma ave maravilhada. Sou uma ave dessa terra santa.
SimonePedersen é escritora.
Tem vinte livros publicados para crianças, jovens e adultos.
Faz oficinas e contações de histórias em escolas do Brasil.
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