O grito silencioso de Rodrigo
Sonho que estou em um teatro, assistindo a um balé. A composição não tem um título. Seu autor, um músico alemão, o escreveu para manifestar um sentimento que o oprimia. Um sentimento muito forte, devastador, para o qual não havia uma palavra correspondente. Para expressar esse sentimento sem nome, o compositor escreveu o balé a que agora assisto. Porque ele expressa algo a que não corresponde nome algum, o músico decidiu também não nomear seu trabalho.
Alguns dias depois desse sonho, recebo de presente, de meu amigo Marcelo Beraba, amigo ainda dos tempos de colégio, um exemplar do catálogo do escritor e pintor Rodrigo de Sousa Leão (publicado pela editora Pinakotheke no ano de 2009). Rodrigo faleceu em julho do mesmo ano, aos 43 anos. Teve uma vida dolorosa, mas nem por isso menos fértil. Morreu internado em um asilo psiquiátrico, amarrado a uma cama, de um ataque cardíaco. Os médicos o classificavam como um esquizofrênico.
No catálogo que apresenta uma exposição de suas obras, em um texto assinado por outra amiga, Heloisa Buarque de Hollanda, encontro um dizer do poeta, ator e dramaturgo francês Antonin Artaud (1896-1948). Outro artista que a medicina rotulou de louco. Uma ideia que derrama algum sentido sobre o sonho que tive. Diz Artaud: "o ser tem estados inumeráveis e cada vez mais perigosos". Foi também pelo medo de ferir outras pessoas que, uma semana antes de morrer, Rodrigo pediu para ser internado. Não quis ir no carro da mãe, temia agredi-la.
Preferiu tomar um táxi e viajou abraçado (agarrado, ancorado) à irmã. Arrisco-me a pensar mais: foi por temer sentimentos tão fortes que não cabem dentro de palavra alguma que ele, cheio de afeto pelo mundo, pediu que o atassem à cama. Sofria de sentimentos extremos e incontroláveis, exatamente como o sentimento sem nome que, em meu sonho, leva o compositor alemão (sem nome também) a compor seu balé. Alguma porta de saída, alguma brecha, sempre existe. É preciso lutar para encontrá-la e Rodrigo fez isso.
Passo a folhear o catálogo que apresenta as pinturas espantosas de Rodrigo. Também nelas _ imitando o que se passa com o compositor alemão de meu sonho _ a arte atua como um freio. Uma obra que, como dizem com lucidez os curadores da exposição, Marta Mestre e Ramon Mello, estabelece uma intensa relação com a literatura e "reabilita o delírio como estratégia de arte". Uma obra de transformação, que infelizmente não o salvou. Mas me desminto: salvou sim. Ela está aí, para calar nossos argumentos. Ainda que tenha sido, no fundo, a afirmação de um não.
Helô Buarque encontrou a frase de Artaud em um artigo da psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999). A ideia dos estados inumeráveis do ser, reflete Helô, é o resultado da percepção de Nise de que "os médicos não têm vocabulário para dialogar com os esquizofrênicos a não ser através da arte".
Eles estão tomados por forças que dilaceram e esmagam as palavras. Diante delas, os nomes se tornam invólucros desprezíveis e inúteis. A língua exibe sua impotência. Sobram as imagens (Rodrigo), ou então a música (o compositor alemão de meu sonho).
Detenho-me em uma das telas de Rodrigo que mais me espanta: "O homem não", de 2009. Trata-se do retrato desafiador de uma máscara que, congelada em uma profusão de cores, nos encara. A figura de uma negação. O homem tem a boca trancada: ela é apenas um traço lilás. Parece se negar a dizer algo que exigimos que ele diga. Recusa-se a atribuir um nome ao que não tem nome. Um homem que, para dizer não, não precisa de palavras. Basta-lhe o silêncio. Também Rodrigo se negava a ser o que mundo normal lhe pedia. Não vou idealizar a loucura: havia uma grande dor nessa escolha. Se é que podemos pensar numa escolha. Mas havia também uma potência, que não apenas seus quadros, mas seus livros afirmam.
Rodrigo pintou toda a sua pequena obra, cerca de 60 telas, no ano de 2009, durante seus três últimos meses de vida. Lembram os curadores que começou a trabalhar em cima de uma mesa de pingue-pongue do playground do prédio onde morava. O condomínio o proibiu de usar a mesa. Passou a dependerurar as telas nas janelas da área de serviço do apartamento da família e a pintar ali mesmo, entre baldes e vassouras. Encontrava sempre uma brecha para resistir. A arte é uma brecha. Mesmo quando temos a boca fechada como "O homem não", alguma coisa escapa. A própria arte é esse escape.
Em seu texto, Helô Buarque recorda o dia em que conheceu Rodrigo, no ano de 2002. Ele trabalhava como jornalista do site Balacobaco e chegou para entrevistá-la a respeito de uma antologia literária que ela acabava de lançar. "Me irritou sua insistência em induzir minha fala", recorda Helô. "Parecia atento, matreiro, procurando uma brecha". Sempre a brecha, de que Rodrigo jamais desistiu. De tão estreita, não consegue acolher as palavras. Como escritor de talento, Rodrigo conhecia os limites da língua. "O homem não" tem os olhos esbugalhados em um amarelo atordoante, de onde escorre uma luz. O resto do rosto é obscuro, mas ali, naquele amarelo, mesmo sem possamos saber o que, algo se expressa. Algo sem nome. Algo que nega a dizer. Uma negação, um não.
Volto a meu sonho do compositor alemão. As palavras também diziam "não" a meu músico. Ele sentia, sentia, mas não tinha como dizer o que sentia. Salvou-se pela música que, sem nada dizer, abre uma brecha e murmura. Ocorre-me que o "não" é uma palavra que nada expressa, apenas nega e corta. O homem que diz não se recusa a dar o nome errado às coisas. Nega-se a facilitar seu destino. Talvez por isso, nos três meses anteriores à sua morte, Rodrigo tenha se agarrado às imagens silenciosas. Não queria "ser artista", não dialogava com tradições, não tinha expectativas críticas. Queria apenas expulsar de dentro de si algo que o oprimia. A pintura foi seu grito.
José Castello -Jornalista e escritor, colunista do caderno Prosa, de O Globo, autor de "Vinicius de Moraes: O poeta da paixão" (Companhia das Letras, 1993), "Inventário das sombras" (Record, 1999) e "A literatura na poltrona" (Record, 2007), além de "Ribamar" (Bertrand Brasil, 2010, prêmio Jabuti de melhor romance de 2011)
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