Tempestade na Primavera
A verdade é que ele nem se lembrava quando teve o primeiro pensamento homicida. A vida toda ele planejou assassinatos que nunca levou a cabo. Mas a primeira vítima imaginária, estava quase certo disso, foi a mãe. Desde criança se pegava imaginando como poderia matar a própria mãe. A preferência maternal, é preciso destacar, se deu por motivos meramente circunstanciais. Conviveu pouco com o pai e não teve irmãos.
Um pouco mais tarde, os alvos favoritos passaram a ser os professores. Tinha uma predileção pelos professores de matemática, talvez por ensinarem uma disciplina insondável.
Na adolescência, várias foram as vítimas imaginárias, quase sempre garotas gostosas que nunca lhe deram bola. Gostava especialmente das populares e metidas.
As pessoas o viam com frequência contemplativo e achavam que era distraído e fechado, estranho até, contudo não podiam supor o que se passava em sua mente.
Sua obsessão era o crime perfeito. O assassinato indevassável. Ninguém nunca descobriria o autor do crime ou o motivo. Um corpo de delito sem vestígios.
Houve vários planos. O veneno em várias formas. Quitutes envenenados. Gases tóxicos. Roupas de cama envenenadas. Serpentes venenosas. Também poderia se dar com a vítima dormindo indefesa. Talvez apunhalada ou sufocada com o travesseiro enquanto sonhava tranquilamente. O atropelamento também lhe parecia soberbo. A vítima moída por um monstro de metal e deixada à própria sorte no asfalto indócil.
Um dia teve uma revelação. Porque sempre arquitetavam os planos, todavia nunca passava da etapa da premeditação? Porque milhares de assassinatos imaginados, embora nunca levados a termo? Só existia uma explicação: ele não era um homicida e sim... um suicida. Tudo se desanuviou. Sentiu uma espécie de torpor seguido por um alívio imediato. Sim, é isso!
Mas como poderia se suicidar? Refletiu e chegou à conclusão que poderia fazer um atentado suicida e levar vários inocentes consigo. Poderia até deixar uma carta inflamada contra “o sistema”, os estrangeiros ou qualquer outra causa. Não! As outras vítimas iriam eclipsar sua própria história. Dessa vez seria o personagem principal, aliás, o único. Resolvido, mas ainda faltava escolher o método.
Pular de uma ponte parecia-lhe banal... e poderia não morrer. Tinha horror ao sofrimento físico, especialmente o seu próprio. Teria que ser uma morte rápida e indolor. Poderia pular do terraço de algum prédio alto. Talvez... Beber veneno, mas e se for muito doloroso? Ou, quem sabe, estourar a têmpora com um tiro. Mas há o inconveniente da arma. Não tinha armas e nem sabia usá-las. Atirar-se na frente de um trem soava-lhe muito drástico.
Por fim, decidiu-se. Iria jogar-se com o carro para dentro do rio. Digno de notícia de primeira página dos jornais locais. No dia escolhido estava acelerado e inquieto. Esperara muito por isso. Já era bem tarde quando escolhera a ribanceira perfeita. Bem íngreme e terminando em uma bela queda nas águas turbulentas do rio. Posicionou o carro. Seu coração batia-lhe violentamente na caixa torácica. O estômago revirava-se e sentia um calafrio profundo. Pensou em rezar, mas não. Não convinha. Sem protelação agora. Nada de refugar. Tomou alguns goles de um uísque qualquer que pegara em casa. Pensou que todos os caminhos o levavam a esse destino, que nunca houvera outra opção para ele.
Ligou o farol alto, engrenou o carro e acelerou... pisou no pedal até o assoalho. Não tem mais volta. Fechou os olhos e... nada! O veículo patinava. O motor grunhia alto e, apesar disso, o carro não se movimentava. Continuou acelerando por mais um tempo. Então, desistiu. Desligou o carro, desceu e olhou. O caminho estava bem enlameado. Voltou para o carro e ligou-o novamente. Engatou a ré e acelerou. Sem resultado. Alternava tentando fazer o carro se mover para frente e para trás, mas não parecia funcionar. “Que droga! Nada dá certo”, ponderou. Mas não podia desistir. Ainda mais agora que tinha encontrado o seu propósito na vida, sua missão. Desceu a pé até chegar perto da margem do rio. Estava escuro, mas era possível ver a correnteza forte do rio. Escutava aquele barulho e se imaginava no carro sendo arrastado e afundando com ele dentro. “Será uma morte épica”, pensou. Decidiu tentar novamente. Experimentou movimentar o carro de ré e sentiu um ligeiro movimento. Foi acelerando o automóvel lentamente para frente e, de repente, sentiu um tranco seguido de um solavanco. O carro pegava velocidade depressa e pulava muito. Poucos segundo depois o carro caia. Sentiu-se sem peso. Parecia que o tempo tinha parado. Era surreal. Entretanto, logo sentiu o impacto na água e ouviu o estrondo. A frente do carro se inclinara e a correnteza o arrastava com fúria. O carro afundava rapidamente. De repente, algo deu errado. Bem, a execução do plano ia conforme o esperado, mas ele sentia um apavoramento. O instinto de sobrevivência gritou: "salve-se!" Tentou abrir a porta, mas não conseguiu. As pernas já estavam encharcadas. Havia água por todos os lados. Esforçou-se para se mexer, mas não logrou êxito. Lembrou-se, enfim, que o cinto de segurança o prendia. Buscou soltar-se, mas não pode. Concentrou-se para tentar se acalmar um pouco e o cinto, por fim, saiu. “Não vou morrer assim”, pensou. A porta não abria e os balanços o jogavam de um lado ao outro. Firmou-se na poltrona o melhor que pode e chutou violentamente o pára-brisa. Sem êxito. Nem um arranhão. Chutou várias outras vezes, contudo o pára-brisa era muito forte para ele. A água já enchia mais da metade do interior do carro. Súbito, foi jogado de cara contra o painel. Afogou-se um pouco e, então, percebeu que o carro estava diminuindo a velocidade e já estava quase parado. Sentiu que era sua chance de escapar. Atrapalhou-se um tanto até finalmente conseguir abrir a porta. Saiu do carro e percebeu que estava bem perto da margem. Sair do rio, entretanto, não era tarefa fácil. A correnteza o arrastava e bebia muita água, porém, depois de um esforço supremo, já estava engatinhando em terra firme. Tossiu bastante. Pôs a mão na boca e notou que sangrava. Parecia que tinha quebrado alguns dentes. Os lábios estavam cortados. Sentia-se cansado e tremia, mais de medo, mas também de frio, todavia estava seguro. “Porque fiz uma idiotice dessas?” - perguntou-se. “Minha mãe vai me matar” – lamentou-se. Levantou-se e tentou localizar-se, mas não conseguiu perceber onde estava. Olhou ao redor algumas vezes e logo viu que estava perto da ponte. Elaborou a melhor forma que lhe pareceu para subir. Atravessou um terreno acidentado e uma subida escorregadia e depois de alguns minutos e um par de tombos chegou à rua. Estava longe de casa e não sentia ânimo para caminhar até lá. Sentou-se no meio-fio por uns instantes e pôs as ideias em ordem. Só queria ir pra casa e dormir. “Foda-se esta história de suicídio” – resolveu. Contudo, sentiu um esmorecimento. Sua situação não seria boa ao chegar em casa. O que diria para a mãe? Teria que contar uma mentira. Falaria que fora assaltado e reagira. Durante a luta com os assaltantes o carro caiu numa ribanceira e mergulhou no rio. Levantou-se e sentiu que a perna direita falhara-lhe. Sentia uma dor lancinante. A perna doía. A boca ainda sangrava abundantemente e percebeu que a face também estava machucada. “Eu tô é fudido mesmo. Bem feito!” – murmurou ressentido.
Caminhou o quanto pode. Sentava-se para descansar de tempos em tempos. Passaram alguns carros, mas ninguém parecia se incomodar com ele. Teve a impressão que sua visão escurecia. Experimentou uma vertigem intensa. Abaixou-se e vomitou. Tossiu também. Inspirou e expirou profundamente até achar que estava um pouco melhor. Resolveu deitar-se e descansar um pouco. A consciência principiou a abandonar-lhe.
Acordou em uma cama de hospital. Percebeu que estava com a perna engessada. Sua visão foi clareando e viu a sua prima sentada à sua frente. “Qualquer pessoa menos ela” - pensou. “É uma chata e me odeia” - concluiu.
Deu um suspiro e ela tomou a iniciativa de principiar a conversa:
- Porque tentou se matar, cabeçudo?
- Eu... não tentei nada. Fui assaltado...
- Mentira! Um cara viu tudo. Contou que você jogou o carro no rio de propósito. Todo mundo já sabe.
Ficou em silencio. Não sabia o que dizer.
- Vou chamar a tia. Você não devia ter feito isso.
Tentou falar alguma coisa, mas ela saiu ágil como uma maldita gata.
Dez segundos depois sua mãe entrava no quarto. Sua expressão era severa. Fez uma careta, como se fosse chorar, mas se recompôs quase que imediatamente.
- Porque você fez isso? Como você pode ter feito uma coisa dessas?
Ele não conseguiu articular palavra, mas a mãe continuava o encarando, esperando uma resposta. Por fim, falou:
- Você não entenderia...
- Pois, tente. Você vai ter que se explicar.
- Minha vida nunca teve um sentido...
- Cale a boca. Você precisa de uma namorada. É só isso. Já tem dezessete anos e nunca namorou. Só fica trancado dentro daquele quarto. É só isso – disse com rispidez e saiu do quarto chorando.
A prima então entrou e disse-lhe:
- Você é um babaca mesmo. Patético!
Não respondeu. Também ele começou a chorar. Considerou o que faria a partir de então. Nunca se sentira tão humilhado e tão só.
Nesse momento, uma revolução iniciou em sua mente. Compreendeu finalmente que ele mesmo estava criando os monstros que o estavam destruindo. Se estava nesta terra desolada, a culpa era toda sua. Estava com medo, embora compreendesse que não devesse estar, afinal, percebia que dispunha de todas as ferramentas que precisava para por sua vida nos eixos. Era chegada a hora de ousar começar uma nova jornada. Hora de reagir!
Eduardo Moreira Lustosa-Nascido em Barra do Garças (MT), mas
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