Danou-se!
Outra noite de
alegria na fazenda Enluarada. Noite de farto calor, sem abano de vento, sem
lenha ou fogueira, mas com assuntos afogueados, muita lenha na malícia e a lua
magrinha, feito colar de madrepérola. O cafezinho? De sempre: “fresco e mais
pra amargo”.
A conversa, como de
hábito, sem cós nem barra: ora desleixada, descontraída, ora variada e com a
costumeira marca: o sujeito indeterminado, um jeito de camuflar a identidade do
fofoqueiro. Assim, de “dizem” em “dizem”, ninguém escapava dos afiados
faladores. Menos ainda, a mulher do prefeito. Tampouco, alguém se aventurava a,
sequer, uma saidinha rápida, mesmo só para acalmar as súplicas das tais
necessidades íntimas, naturais e intransferíveis. Por medo de ser o próximo
candidato a frangalho naquelas bocas debochadas.
– Não arredo as
búndegas daqui. Prefiro, mesmo à força, recolher minhas precisões aos seus
respectivos aposentos, pedindo-lhes um pouco de paciência, a ausentar-me;
melhor passar sufoco a virar bobó de diz-que-me-diz ou isca de fuxico – avisava o compadre Delfino, entremeando
muxoxos desengonçados e estalos desagradáveis de dedos, enquanto olhava de
esgueira para um certo vizinho, homem mexeriqueiro e gozador.
E, entre um assunto
e outro, ela, Madalena das Graças, a mulher do prefeito (e tema preferido das
conversas), à revelia de seu conhecimento, incorporava-se à noite, na ponta da
língua do tal zombeteiro:
– Vocês souberam da
última?
– De quem, de
quem...?
– Ora, de dona
Madalena, naturalmente!
– Dizem que
aquele garoto encapetado, o tal que engarrafou o sapo, pois é, o moleque roubou
o vinho do padre e embebedou a mulher do prefeito quando ela esperava o vigário
pra se confessar e se livrar de alguma culpa enooooooooorme, claro!
– Quer dizer que o
moleque, com o vinho, ludibriou a madama, entrou no confessionário e se fez
passar pelo confessor? Um legítimo dois-em-um, o moleque...
– E, assim, ouviu
todos os pecados capitais, municipais, cabeludos, emperucados... da
mulher-dama, isto é, da primeira dama!
– Dizem, redizem e
tredizem, bem endiabrados os pecados da dona Madalena... Alguns até desdizem,
mas o fato já criou raiz e virou verdade, pronto! Mas os pecados, acho, foram
também engarrafados pelo moleque, pois ninguém conheceu os bandidos.
– Ninguém? O amigo
está desatualizado e eu, calvo de tanto saber. Garanto-lhe: é um pecadão! E me
foi contado em segredo; porém, se o próprio dono não foi capaz de engavetá-lo,
por que não o revelar? Bem, dizem que a mulher, pensando tratar-se do padre –
sim, o padre alvo de seu exacerbado desejo –, confessou-lhe toda a sua paixão,
alguns pensamentos traquinas, ao tempo em que lhe fazia propostas serelepes e
exuberantes. Chegou a prometer intercessão, junto ao marido-prefeito, a favor
de uma geral e irrestrita reforma na igreja. Tudo em troca de certas benesses
do amor...
– Virgem Maria,
danou-se! Então, era o endemoniado moleque e não, o vigário...?!
– E, mal o moleque
bateu um cílio no outro, as querenças da leviana já estavam materializadas em
dois volumosos e empinados “argumentos”. Hum... e que dupla, dizem...!
–“Argumentos”
saltando belo abastado decote e vistos pelos buraquinhos do confessionário. E
será que o moleque aceitou os volumosos, não, os empinados, digo, os
“argumentos”?
– Que nada! O susto
foi tão grande que o garoto, em pânico, saiu em disparada, gritando: “Socorro!
Eu vi, ao vivo, juro, uma mula-sem-cabeça bêbada, com duas desinibições roliças
apontadas pra mim, não, não, pro padre, ai, meu Deus, pra nós dois, ah! sei lá!
Socorro!”.
É, pelo visto, o
vinho saiu pela culatra...
Baiana de Urandi e goianiense por adoção, LÊDA
SELMA (de Alencar) é graduada em Letras Vernáculas e pós-graduada em
Linguística. Poetisa, contista, cronista (escreveu para o Diário da Manhã por
21 anos, aos domingos), integra várias antologias nacionais e internacionais. É
verbete em obras como o Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras, de Nelly
Novaes Coelho, São Paulo/SP, e Enciclopédia de Literatura Brasileira, Afrânio
Coutinho/J. Galante de Sousa, São Paulo/SP. Atual vice-presidente da Academia
Goiana de Letras/AGL (ocupa a Cadeira 14), da Associação Nacional de
Escritores/ANE, União Brasileira de Compositores/UBC, União Brasileira de
Escritores/UBE-GO e Associação Goiana de Imprensa/AGI. Publicou 15 livros
(poemas, contos, crônicas). Entre várias premiações, o Troféu Tiokô de poesia,
da UBE/GO, Troféu Goyazes Marieta Telles Machado, de crônicas, da Academia
Goiana de Letras, e o Mérito Cultural, pelo conjunto da obra, da UBE/RJ.
Recebeu os títulos: Cidadã
Goianiense e Cidadã Goiana.
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Um comentário
Mais um delicioso texto. Parabéns!
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