Jasmin e Alfaces
Olhou
para o chão, para a terra de tom desbotado, viu os chinelos empoeirados e os
pés também. Odila não gostava dessa coisa baça deixada pela poeira no seu
trajeto, como se sublinhasse o silêncio ao qual estava obrigada. Não é que ela
seja uma criança inquieta, mas se incomoda quando não há escolhas. É hora da
sesta, a louça já foi lavada e as panelas secam ao sol, para que fiquem
brilhando. Ela não corre porque senão o cachorro vai querer brincar e,
certamente, vai latir. Perambula pelo pátio de terra dura, bem varrida,
recortado por grama e pelos canteiros de dona Fabiana. Não gosta de ir até a
horta nesse horário porque o sol, mesmo manso, faz as folhas desanimadas e isso
aumenta o peso de manter-se calada.
Antes
de se recolher, a mãe faz sempre as mesmas recomendações - para não se molhar
nem ficar no sol e que não fosse Odila arranjar nenhum machucado. A menina não
responde, apenas pendura o pano de prato e sai, deixando a porta da cozinha
entreaberta. Dona Fabiana deitada e ela senhora daquele território que anos
depois reconheceria tão menor do que lhe soava naquela tarde.
A
vontade era de escapulir, investigar os pátios das outras casas - especialmente
as que tinham muro ao invés daquela cerquinha de bambu feita pelo seu pai - ou
seguir até o final da quadra, onde estava o campinho de futebol, reduto da
meninada do bairro nos sábados à tarde. Mas o portão de madeira fazia um
barulho choroso quando era movimentado, e isso poderia acordar dona Fabiana.
Lugar de menina é dentro de casa, quando muito no pátio, ela dizia. Odila não
tinha permissão para correr com as outras crianças pela rua sem pavimentação e
também não podia assistir as peladas no final de semana. Aquilo eram coisas de
guri arruaceiro, nunca de gente decente.
Sem
poder explorar as calçadas bem varridas dos vizinhos, Odila se concentrou no
jardim em frente à casa. Arrancar os inços e afofar a terra ajudava a preencher
o vácuo da tarde sem rádio nem companhia para brincar. Há dias o sol não dava
trégua, Odila nem lembrava quando tinha sido a última chuva, mas mesmo assim
havia muitas ervas daninhas disputando espaço com as plantas e em alguns
canteiros as flores já começavam a perder a briga. A menina notava que a mãe já
não dedicava a mesma atenção às folhagens, tampouco à horta e resolveu cuidar
daqueles retângulos delimitados por tijolos maciços enterrados no solo na
diagonal, formando uma borda serrilhada. Queria causar alguma fissura no
amargor que marcava as atitudes de dona Fabiana depois da viuvez e acreditando
nessa possibilidade, começou pelo canteiro onde estava o jasmim e antes mesmo
de arrancar os capins sob o arbusto viçoso, gastou um tempo retirando as flores
secas ainda presas ao pé. Já não tinham o perfume insistente, mas as pétalas
ressecadas, de um tom pardacento, mantinham uma textura ainda agradável ao
toque. Odila prestava atenção a esses detalhes.
Catou
todas as flores secas que estavam no passeio coberto de brita, juntou também as
corolas murchas espalhadas no canteiro onde o pé de jasmim fazia as vezes de
cabeceira e formou um pequeno monte para depois carregá-las para a horta, onde
virariam adubo - aprendia essas coisas com o irmão mais velho quando ele
aparecia para visitar. Demorou um instante gostando do resultado daquela
limpeza, olhando para a planta renovada, sem os tons terrosos sujando a
folhagem de brilho indeciso. Depois, se pôs de joelhos à borda do canteiro e
começou arrancando a grama de folha muito delgada que a mãe chamava de
capim-pelo-de-porco. Não entendia aquele nome, afinal nunca vira nenhum porco
com pelos tão longos, e menos ainda verdes. Eram difíceis de arrancar,
especialmente com a terra tão seca, então resolveu buscar alguma ferramenta que
ajudasse a vencer o solo endurecido. Fazendo o menor ruído que pode, pegou uma
faca de mesa, daquelas pesadas, de metal grosso. Havia somente duas daquele
tipo na gaveta, as outras eram de qualidade muito inferior e certamente não
resistiriam ao esforço. A ponta arredondada e o peso ajudaram a enfrentar a
resistência do chão ressecado sem maiores riscos de se machucar, mas não era
fácil arrancar o capim pela raiz, como era preciso fazer para que não brotasse
com força na próxima chuva. Arrancou alguns com sucesso, mas outros foram
apenas cortados rente à terra e alguns nem tão rente assim.
Odila
queria avançar mais rápido na tarefa e percorrer toda a superfície daquele
canteiro para que a mãe tivesse uma surpresa boa ao acordar, mas o calor já
começava a deixar marcas de suor na roupa e ela teve medo. Levantou com os
joelhos marcados da poeira e do pouco peso que haviam sustentado e buscou a
sombra da goiabeira. Dali contemplou o trecho trabalhado e não gostou do
resultado. Ao invés da terra limpa, levemente remexida, exibindo apenas as
folhagens e flores escolhidas pela mãe, viçosas como quando foram plantadas,
ainda via um solo com torrões de tamanho irregular onde despontavam restos de
inço com folhas arrancadas pela metade. O aspecto havia melhorado com sua
dedicação, mas para oferecer à mãe o presente imaginado, precisaria de melhores
ferramentas e de uma força que só alcançaria anos mais tarde; mantinha,
entretanto, a esperança de que o esforço fosse percebido.
Quando
seu Lúcio comprou o terreno e construiu, com a ajuda dos irmãos, a casa onde
mal teve tempo de aproveitar o pôr do sol que se avistava da porta da cozinha,
dona Fabiana plantou violetas e cravinas, semeou margaridas e zabumbas e
arranjou, com esmero, folhagens sortidas - as folhas matizadas de muitos tons
de verde e bordô encantavam as vizinhas. A maior parte das plantas era
barganhada ou presenteada por conhecidas das redondezas. O pai preocupava-se
mais em cuidar da horta, de onde vinha uma ajuda importante para o colorido da
mesa.
Ainda
pouco suscetível às teias da memória e da nostalgia, a menina não pensou nisso
durante seus afazeres no pátio castigado de sol. Essas associações só
aconteceram bem mais tarde, quando o silêncio depois do almoço não era a
obrigação de zelar pelo sossego da mãe, mas sim uma imposição de sua ausência e
a lembrança das lides de jardinagem desenterrou outras, de quando a família
começou a se desmontar. Dos dias logo após o velório ela não tinha nenhum
registro porque todos acreditavam que a pequena Odila não tinha idade
suficiente para participar daqueles rituais. Ignoraram que a tristeza já havia
contaminado suas manhãs quando a doença começou a limitar as tarefas do pai nos
canteiros de alfaces e que o primeiro entardecer sem a comemoração de assistir
o repouso do sol sentada ao lado do pai na porta da cozinha foi mais pesado que
a conversa cheia de eufemismos para lhe comunicar o irrevogável da ausência de
seu Lucio.
Faltava
pouco para o fim da sesta e o sol ardia na terra. O jardim não ficou bonito
como quando sua mãe se empenhava em regar as mudas recém plantadas logo pela
manhã - aproveitando o tempo enquanto a roupa esperava no tanque, coberta pela
espuma cheirosa do sabão em pó. E o ânimo com que iniciou a catação das flores
secas se convertia aos poucos numa decepção doída. Ouviria reprimendas porque
sujara a roupa e teria de esconder a faca indevidamente retirada da cozinha,
pois apesar da aparente resistência da peça, a ponta fora danificada e o olhar
atento de sua mãe não deixaria aquilo passar em branco. E tanto risco para um
resultado tão longe do imaginado.
O sol
já alcançava a janela do quarto e logo logo a réstia entraria pela fresta da
madeira, desenhando aquela lista em diagonal sobre o travesseiro. Dona Fabiana,
tendo as pálpebras roçadas pelo calor mais agudo daquela lista de sol,
levantaria sem o luxo de um espreguiçamento e retomaria todas as rotinas de
limpeza e arrumação da casa, cobrando da criança os temas feitos e a ausência
de máculas a se esperar do bom comportamento que ela quase nunca alcançava
satisfazer. Mais tarde se prepararia a mesa para o café e Odila teria de vencer
a repugnância pela película de nata que se formava na superfície do café com
leite sem queixas.
Este
conto participou do Concurso de Contos Eu Amo Escrever,
e dentre 2.195 textos inscritos, alcançou o 112º lugar.
Maurem Kayna é engenheira
florestal, baila flamenco e se interessa por literatura desde criança. Depois
de publicações em coletâneas, revistas e portais de literatura na web resolveu
apostar na publicação em e-book e começou a se interessar por tudo que orbita o
tema, por acreditar que essa forma de publicação pode ser uma das chances de
aumentar o número de leitores no Brasil. Autora da coletânea de contos Pedaços
de Possibilidade, viabilizado pela iniciativa da Simplíssimo. Páginas na
internet: mauremkayna@uol.com.br - mauremkayna.com/ - twitter.com/mauremk
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