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Laura [Raul J.M. Arruda Filho]

 Laura

Laura era viúva. O falecido teve uma dessas mortes de caricatura. Em plena lua de mel. Leito nupcial. Ataque cardíaco. Fulminante. Antes mesmo de consumar o que lhe era − por direito cartorial e religioso − permitido consumir. Nada muito diferente do que Dona Antônia, a augusta e excelentíssima mãe do morto, havia previsto vários anos antes quando constatou que levantar e baixar o copo de cerveja em cima da mesa, no boteco da esquina, talvez tenha sido a coisa mais parecida com exercício aeróbico que seu dileto filho alguma vez fizera na vida.

Laura não era virgem, mas ficou com fome. Não podia ver um homem em condições de uso que sentia uma necessidade atávica de afiar as garras e saborear a vítima como se fosse um bom filé. Só sossegava depois de ouvir a voz do coitado solicitando socorro ou uma ambulância.


Quando conheceu Rogério, suspirou. Quer dizer, sentiu um calor insensato, uma vontade infinita de gemer sem sentir dor, como naquela canção fora de moda que ela, às vezes, lembrava no meio da madrugada ao ver a metade vazia de sua cama. Assim como dois mais dois é igual a três mais um, começou a elaborar um plano para executar diversas e variadas safadezas − dessas que sequer as almas mais perversas são capazes de imaginar ou inventar. Queria tudo. E mais um pouco. Um pouco mais nunca é demais, que ninguém duvidasse do que ela era capaz.

Sem constrangimento ou temor, instalou o terror. Diante do escolhido, disse o que queria, como queria e porque o queria. O rapaz ouviu e tremeu. Nunca, jamais, em tempo algum, imaginou a situação. Aquela, pelo menos. A praxe em circunstâncias similares envolvia outras abordagens. A principal era fazer pose de pirata antes de praticar violências contra navios desprotegidos.

A fala de Laura instituiu outras urgências no falo de Rogério. Difícil recusar a mistura de encantamento e medo. Difícil aceitar as mentiras que, por um motivo ou outro, ocupam o lugar daquilo que talvez pudesse ser a verdade. A vida está repleta dessas encruzilhadas.

Sem medir as conseqüências, foi em frente. Com olhar de canibal estampado no rosto, Rogério caminhou na direção do matadouro. Quem seria capaz de recusar tamanho banquete?

Raios e trovões cruzavam a noite enquanto, dentro do quarto, sob os lençóis, os amantes descobriam prazeres escondidos nos corpos um do outro. As roupas ficaram empilhadas em uma cadeira, a camisa escorrendo pelo espaldar, querendo fazer companhia para as meias − que estavam espalhadas no chão.

O desassossego que antecede o som de prato estilhaçado no piso cerâmico da cozinha é metáfora da existência humana. Foi isso o que Laura murmurou no ouvido de Rogério. Ele não entendeu nada. Talvez não estivesse em condições de entender qualquer coisa. O desejo causa embotamento, sussurrou a fêmea. E completou o massacre dizendo que sexo é luta de guerrilha, campo minado espalhado pela cama.
 
Rogério quase se declarou apaixonado. Laura (usando do sagrado direito de proprietária do diversificado supermercado sexual que estava alimentando o rapaz) agiu com rapidez e, no uso plenipotenciário do veto, matou o sentimento com meia dúzia de frases desagradáveis. Sequer teve compaixão quando ouviu a voz chorosa declarar que, algum tempo antes, havia perdido o sono. No escuro, durante muito tempo, ficou olhando ela dormir, o fio da vida ligando a respiração suave ao silêncio da noite.

Laura encerrou o assunto decretando horror às palavras gastas pelo atrito entre os corpos. E, antes que ele esboçasse alguma reação, o mandou embora, não queria mais brincar. Na porta do apartamento beijou o rosto do amante e encerrou o encontro. Com voz visivelmente irritada, declarou:

- Foi muito bom, muito divertido, mas a fila anda.

*Ilustrações de Pierre Bonnard (1867-1947)


Raul J.M. Arruda Filho, 53 anos, Doutor em Teoria da Literatura (UFSC, 2008), publicou três livros de poesia (“Um Abraço pra quem Fica”, “Cigarro Apagado no Fundo da Taça” e “Referências”). Leitor de tempo integral, escritor ocasional, segue a proposta por um dos personagens do John Steinbeck: “Devoro histórias como se fossem uvas”. 
Todos os direitos autorais reservados ao autor.

Um comentário

Brasilino Neto - Caçapava - SP disse...

Raul. otima.

abraços