Sentimentos Incômodos em Tempos Hedonistas
Há sentimentos que requerem tempos longos. Pedem recolhimento, reflexão, respiro. São sentimentos que parecem obsoletos, nos dias que correm. Não lhes concedemos espaço, não mais os toleramos.
O sofrimento, as dores da alma, a perda, a tristeza, aparecem hoje como elementos estranhos, um pouco vergonhosos, fonte de certo constrangimento. Sentimentos a abafar ou prontamente superar, de preferência a nem deixar emergir, em consonância com um fácil e imediatista “pensamento positivo”, desejoso de afastar tudo o que possa turbar nosso assentado-ser. Numa sociedade marcada pelo individualismo, pela cultura do hedonismo, do consumo e das aparências, é como se houvesse um acordo tácito de não trazer à tona tão incômodos sentimentos.
O espírito do nosso tempo não acolhe bem a expressão do sentimento de dor e de perda e o compartilhar desse sentimento, quando o que importa são nossas vidas individuais autocentradas, nossas trajetórias projetadas ao êxito, à autoexaltação e a um bem-estar conformista. O sofrimento, a dor psíquica, a tristeza, têm sido banidos do meio social e banidos dos sentimentos dignos de serem sentidos e vividos. Numa sociedade regida por um paradigma de utilidade na relação com os outros, enfraquece-se a noção de alteridade e fragilizam-se os laços sociais. Paradoxalmente, exalta-se a existência (própria), ao mesmo tempo em que se banaliza a existência (do outro, sobretudo).
Engolfados pelo hedonismo e consumismo contemporâneos, acabamos por habituar nosso modo de sentir ao atual esquema de mundo, numa padronização não apenas dos modos de viver e se comportar, mas também do modo de sentir e externar (ou não) nossos sentimentos. O sofrimento é visto como perturbação da normalidade desejada e da autoimagem aspirada ou projetada, e passa, assim, a ser cada vez mais objeto de medicalização, tratado com psicofármacos.
Nesse contexto, também o consolo perde espaço, tornando-se artigo raro. À exceção do âmbito religioso, onde talvez o consolo e o conforto ainda sejam mais habitualmente praticados, parece ter havido uma forte redução da capacidade das pessoas de ofertar alento, a qual deveria ser precedida por outra postura em desuso: a de ouvir verdadeiramente. As frases de entusiasmo, de rápida superação, ainda que bem intencionadas, não escondem o constrangimento de quem as profere, e frustram aquele que sofre e que gostaria de não ter minorada a razão de seu sentimento, mas antes de ser ouvido e amparado.
Estas linhas conscientemente amargas não desejam, em absoluto, fazer uma apologia do martírio. Querem apenas refutar a ideia de que o sofrimento por determinadas situações ou perdas configura-se como atitude irracional, incompreensível ou fruto de fraqueza.
Nem todo sofrimento é irracional. A racionalidade pode manifestar-se de diferentes formas. Diante de uma perda, como a perda de uma vida em seu início, dar espaço à dor pela perda pode ser bastante racional, na medida em que sofrer por uma vida que se perde é reverenciar a vida. É reconhecer seu caráter de unicidade e irrepetibilidade. É dignificá-la, revestindo-lhe de significado.
Nem todo sofrimento é fraqueza. Aceitá-lo é aceitar a vulnerabilidade da condição humana, vulnerabilidade que nos faz humanos, sendo ponto de partida para a reflexão filosófica e a produção criativa. Há muita força no sofrimento; é preciso força para aceitar, acolher e lidar com as nossas próprias dores, angústias e incertezas.
Nem todo sofrimento é patológico. A tendência de excessiva medicalização do sofrimento pode resultar numa autolimitação do sentir, além de conduzir à perda da noção de um sentido subjetivo do sofrimento, necessário para o reencontro consigo mesmo, com sua historicidade, singularidade e valores. A progressiva superação da dor e da perda passa pela compreensão ou pela construção de sua significação pessoal.
Acolher os momentos dolorosos com mais naturalidade, e ao mesmo tempo com mais profundidade, é encarar sua vivência e enfrentamento como processos necessários para o reconectar-se conosco, com nossa identidade e subjetividade, com o que de fato importa em nossas vidas.
Letícia Möller nasceu em Porto Alegre, em 1979. É autora dos livros infantis “Eu e você, aqui e lá!” (2010) e “Corre, Pedro, corre!” (2011), ambos pela WS Editor, além de livros e ensaios sobre direito e bioética. Também é advogada atuante, graduada em Direito pela PUCRS, mestre em Direito pela Unisinos e Doutora pela Università degli Studi del Salento, em Lecce/Itália. Sites: leticiamoller@yahoo.com.br - www.efemerasletras.blogspot.com - www.loveolivro.blogspot.com
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