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UM PIERRÔ APAIXONADO [Henry Alfred Bugalho]

UM PIERRÔ APAIXONADO

Publicado na Revista SAMIZDAT

Otávio Martins

Um pierrô apaixonado/ Que vivia só cantando / Por causa de uma colombina/Acabou chorando/ Acabou chorando... (Marchinha de Noel Rosa e Heitor dos Prazeres – carnaval de 1936)

Já era o quinto ano que ele não saía para brincar os bailes de carnaval. Nos tempos de solteiro, quantos Bola Preta! Nesses cinco anos de casado, somente assistia o carnaval pela televisão. Ele e a sua mulher.
Na véspera das suas férias, uma sexta-feira, foi dispensado mais cedo. Passou no bar onde costumava na saída do escritório tomar um uisquinho ou uma cervejinha com os colegas, pediu um duplo. “Bastante gelo e bastante uísque!”. O suficiente para que tomasse coragem.

Depois, saiu direto a uma loja ali do centro, a qual alugava trajes de todos os tipos e que, também, funcionava um brechó, lá no fundo. Na seção de aluguel, encontrou exatamente o que procurava: uma fantasia de pierrô. Acabamento e modelo dignos de uma peça da mais alta-costura. Era assim que costumava sair em outros carnavais. Com a intuição de que dali pra frente voltaria aos bailes do Bola, propôs ao dono da loja que vendesse aquela fantasia para ele. Valorizando a mercadoria, o proprietário argumentou que aquela roupa, ao contrário de muitas outras que ali estavam expostas, nunca fora preciso qualquer restauração ou reparo; estava “como nova”. Ele achou salgado o preço, a princípio, mas, acabaram por chegar a um acordo; bom para os interesses dos dois. Numa outra loja, logo mais a frente, comprou serpentina, confete e lança-perfume, além de alguns adereços e uma mochilinha, a qual serviria para carregar os seus pertences.

Ao sair do metrô, a dois quarteirões da sua casa, atravessou a rua e, no bar onde costumava tomar a saideira, mais um duplo.Agora, seria preciso coragem para comunicar à sua mulher que, naquela noite, como nos velhos tempos, voltaria ao Bola Preta e que só retornaria a casa, como fora seu costume, na quarta-feira de cinzas.

Dona Melissa nem levantava os olhos, para não ter de cruzá-los com os do Aristeu, que, àquela altura, estavam totalmente ocupados com a maquilagem e os últimos preparativos para o seu grande retorno como autêntico folião do carnaval.

Quando voltou para casa, quase na hora do almoço, na quarta-feira de cinzas, com uma mistura de odores – lança-perfume, talco, desodorante vencido e outros – difícil de suportar e, também, de definir, desabou no sofá. Na quinta-feira, com a naturalidade de mais um dia de trabalho, levantou-se, tomou um banho, colocou o seu terno azul marinho, apanhou a 007 e saiu. Havia esquecido, completamente, das suas férias.                     

Essa agenda carnavalesca do Aristeu repetiu-se pelos próximos cinco anos, até que dona Melissa resolveu investigar qual era o balacobaco do Aristeu. Apesar de todos aqueles dias fora, nenhuma marca de batom, nenhum perfume ou qualquer outro cheiro que não fosse o seu (dela) ou daqueles que há muito tempo ele costumava usar, os quais ela já bem os conhecia. Nada, aparentemente, que pudesse comprometê-lo, ou “incriminá-lo”. E era justamente isso o que tornava aquelas suas incursões carnavalescas mais intrigantes ainda.

Com uma peruca loira, uma belíssima fantasia de colombina, uma máscara cobrindo-lhe quase todo o rosto, sapatilhas e pochete rosas, logo na sexta-feira, arriscou, de prima, o Bola Preta.

Do mezanino, vasculhou com o olhar, praticamente, todo o salão. O Aristeu, com todos os seus apetrechos, dançava, com visível entusiasmo, sozinho. Deu para perceber que não procurava qualquer companhia; não fustigava nenhuma foliona; não participava de nenhum daqueles cordões de salão, tipo trenzinho. Não paquerava ninguém. Alegremente, jogava confete e serpentina para todos os lados, em todos os foliões. Era, por assim dizer, um caso à parte.

Dona Melissa, então, resolveu aproximar-se - com todos os cuidados necessários para que não fosse reconhecida - e começou a insinuar-se para o Aristeu. Quando ele botou os olhos naquela colombina, a qual ele não conhecia de nenhum dos bailes anteriores, ensaiou, ao seu redor, alguns passos, como daqueles dos mestres-salas de Escolas de Samba e foi-se aproximando, aproximando, até que pegou em sua mão, cavalheirescamente. E não se desgrudaram mais por quase toda a noite. Quando muito, uma paradinha para ir ao banheiro, retomar o fôlego e, na passada, mais uma bebidinha, com o pretexto de manterem o ânimo que o reinado de Momo exigia.

Conversaram muito pouco; Aristeu fez algumas perguntas sem a menor importância, só pra puxar assunto, mesmo. Falou um pouco de si, que trabalhava muito e, como contador da firma, aquele serviço maçante... Os “benditos” balancetes mensais... Precisava, mesmo, tirar uns dias, lavar a alma... Que já estava no décimo ano de casamento... Quando foi interrompido pela colombina, que lhe perguntou por que não trazia a sua mulher para os bailes do Bola Preta? Afinal – palavras dela – “ali era um lugar familiar”. O Aristeu respondeu que sua mulher era uma pessoa muito recatada e, até mesmo para o baile do Bola, não tinha coragem de convidá-la. E continuaram dançando. Já estava um pouco embalado pelas caprichadas doses de uísque e inúmeras cervejinhas. De repente, olhou em volta e depois por todo o salão, a colombina tinha simplesmente desaparecido, como por encanto.

Desatinado, procurou-a por todos os cantos, depois, em outros bailes; não só naquele final de noite, no Bola, mas, também, pelas madrugadas do sábado e do domingo. Uma busca inútil.

Na segunda-feira voltou pra casa logo depois que amanheceu o dia, com a sua mochila, onde costumava carregar todo o seu material, cansado, desiludido com o carnaval. Não conseguia esconder a tristeza, em plena véspera da terça-feira gorda. Juntou tudo, inclusive a sua fantasia de pierrô e, com visível desprezo, enfiou tudo numa daquelas sacolas plásticas grandes de supermercado, jogando-a num canto qualquer do sótão.                                         

A partir daquela noite, voltaram, ele e a dona Melissa, a assistir o carnaval pela televisão.  Quando chegava a sexta-feira de carnaval, ele enchia quase meia geladeira de latinhas de cerveja, além de um litro de uísque sobre a mesinha da sala - para rebater – o que ele costumava chamar de quebra-gelo.

Sempre que a televisão mostrava alguns flashes dos grandes bailes, principalmente do Bola Preta, o seu olho corria ágil pelos quatro cantos da telinha, sob o soslaio de dona Melissa, na inútil tentativa de encontrar a colombina, pela qual havia, perdidamente, se apaixonado.

Henry Alfred Bugalho- Curitibano, formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista em Literatura e História. Autor dos romances “O Canto do Peregrino”, "O Covil dos Inocentes", "O Rei dos Judeus", da novela "O Homem Pós-Histórico", e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca” e do "Nova York, Bairro a Bairro", cidade na qual morou por 4 anos, e do "Curso de Introdução à Fotografia do Cala a Boca e Clica!". Após uma temporada de um ano e meio em Buenos Aires e outra de oito meses na Itália, está baseado, atualmente, em Madri, com sua esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.

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