Descomunicação
Tudo começou ainda
na infância. O menino não tinha sossego. A tosse chegava num rompante,
troteava peito adentro, escapulia boca afora, um suplício que o sacolejava
impiedosamente. Zelosa, a mãe não se descuidava: simpatias, benzeções, preces,
promessas, tudo o que a fé e as crendices lhe apontavam como solução.
Já dizia sua
trisavó: “Mais vale uma má esperança que um bom desengano”. Apoiada nisso,
capturou um peixe, cuspiu em sua boca e o devolveu ao rio, vivo, como mandava o
ritual; outra vez, escreveu a Ave-Maria num papel, introduziu-o no patuá
e o pendeu no pescoço do cachorro; ali ficaria até que o coitado se libertasse
dele naturalmente. Todavia, a mais estapafúrdia das doidices, com o fito de
acabar com aquela tosse ladrante, foi colocar o menino para tossir no ouvido da
imagem de São Braz: desassossegando o santo, ele haveria de milagrear em favor
do filho, acreditava. Por analogia, deduziu: se o santo era especialista em
engasgo, entenderia de tosse convulsa, a tal tosse comprida, afinal, eram áreas
afins, meio aparentadas.
A palavra de
ordem, portanto, para aquela desesperada mãe, “tentar”. Sem medidas. Sem
economia de sacrifícios. Tudo valia a pena se a tosse não fosse pequena (desculpe-me
o trocadilho, Fernando Pessoa). O filho precisava se livrar daquele “regougo
infernento”. Se necessário fosse, flagelaria São Braz ou qualquer santo, sem
misericórdia, até que agissem de forma competente.
Alguns meses
corridos, e a tosse, já nem tão comprida, se espaçava e, aos poucos,
enfraquecia-se. O menino, apenas, vez ou outra, tossicava, “tossinha de
cemitério”, afirmava a vizinha. E a mãe comemorava seus feitos com preces de
gratidão. A coqueluche, finalmente, estava derrotada em tempo recorde.
Passaram-se os
tempos, o menino cresceu, virou homem, um homem atarracado e franzino, de pele
bacenta e cabelos esporádicos (modelo nem ficam nem desocupam a telha). De
repente, ei-la, a tosse, ressurgida com novo status: bronquite asmática. “Culpa
da tosse comprida mal-curada”, retumbava, incansável, a avó. “Nem tudo foi
feito. Faltou cortar um pedacinho da parte branca da pena do urubu,
introduzi-la num amuleto e pendurá-lo no pescoço do coqueluchento”, resmungava
insistentemente. O certo é que a tosse, de volta, não dava trégua àquele homem
de olhar vermelho, olhar de meu Deus, cadê meu fôlego?! E era justo aí que
estava o problema: no fôlego. Um fôlego cambaleante, raquítico, feito bêbado à
mercê da intuição para encontrar o caminho de casa. Um fôlego de deixar
qualquer um sem fôlego.
Ano após ano,
Troncoso continuava com crises de asmas, cansaço e falta de ar. Aos arrancos, a
tosse não o deixava dormir. Uma consumição dividida com a mulher que,
conforme prometeu ao marido, instigada pelo padre, no dia do casamento, lhe
seria “fiel na saúde e na doença”. Casada, pois, em comunhão também de tosse,
fazer o quê, senão uma simpatia? Colheu, então, um punhado de alecrim, deixou-o
secar e, depois, amassou-o. Em seguida, colocou-o em um cachimbo virgem. Cada
vez que a asma se manifestasse, o marido tossegoso fumaria o alecrim.
Não tardou muito, o
médico foi chamado; e intrigou-se com o cachimbo sobre a mesinha de cabeceira.
– Olhe, é preciso
driblar o fumo. Aos poucos, o senhor se adaptará, fique tranquilo. Que tal
fumar só dois por dia?
– Dois...?! Vou
tentar, vai ser difícil, mas se é o doutor quem diz.
Dez dias depois,
Troncoso estava pior.
– Foi complicado,
doutor, mas consegui fumar os dois.
O médico, ao
ascultar-lhe os pulmões, confirmou a piora.
– Doutor, acho que
a culpa é do cigarro.
– Sem dúvida. Por
que lhe pedi que diminuísse as fumadas?
– Diminuísse?! Fiz
foi aumentar, doutor! Afinal, eu não fumava, e só fumei agora por prescrição
médica, ora!
Baiana de Urandi e goianiense por adoção, LÊDA
SELMA (de Alencar) é graduada em Letras Vernáculas e pós-graduada em
Linguística. Poetisa, contista, cronista (escreveu para o Diário da Manhã por
21 anos, aos domingos), integra várias antologias nacionais e internacionais. É
verbete em obras como o Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras, de Nelly
Novaes Coelho, São Paulo/SP, e Enciclopédia de Literatura Brasileira, Afrânio
Coutinho/J. Galante de Sousa, São Paulo/SP. Atual vice-presidente da Academia
Goiana de Letras/AGL (ocupa a Cadeira 14), da Associação Nacional de
Escritores/ANE, União Brasileira de Compositores/UBC, União Brasileira de
Escritores/UBE-GO e Associação Goiana de Imprensa/AGI. Publicou 15 livros
(poemas, contos, crônicas). Entre várias premiações, o Troféu Tiokô de poesia,
da UBE/GO, Troféu Goyazes Marieta Telles Machado, de crônicas, da Academia
Goiana de Letras, e o Mérito Cultural, pelo conjunto da obra, da UBE/RJ.
Recebeu os títulos: Cidadã
Goianiense e Cidadã Goiana.
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