|
Poeta japonês Matsuo Bashô (1644-1694),
que depois iria verter Yukio Mishima para o português
|
Expressões do ocidente e oriente
A edição de Toda Poesia deverá estimular a leitura do conjunto da lírica de Paulo Leminski. Morto em 1989, aos 44 anos, a intensidade de sua presença na cena cultural estimulou uma polarização sintomática.
De um lado, ainda hoje atrai admiradores a aura de poeta maldito, que soube temperar a erudição com o antídoto da irreverência. O título de uma de suas coletâneas, Caprichos & Relaxos (Brasiliense, 1983), é bem o retrato dessa atitude, constitutiva de sua obra. De outro, a opção estética por fórmulas epigramáticas e poemas curtos, com destaque para o haicai, tem fornecido argumento para muitos críticos, como se a brevidade da forma correspondesse ao fôlego parco do poeta.
Tal polarização, centrada exclusivamente na leitura da poesia, oblitera o gesto decisivo: o propósito de assenhorear-se do domínio técnico indispensável ao fazer literário. Leminski perseguiu o ideal de tornar-se exímio artesão: "Vai vir o dia / quando tudo que eu diga / seja poesia".
Esses versos nada têm a ver com um elogio ingênuo da inspiração! Somente o estudo e a disciplina permitem que a palavra do poeta possa, desde sempre, ser poética. Leia-se, nesse sentido, a correspondência com Régis Bonvicino, publicada em Envie Meu Dicionário (Editora 34, 1999): prosa poética telegráfica, sugerindo a onipresença do exercício literário no dia a dia. Uma leitura renovada de Toda Poesia deve recuperar a totalidade da obra de Leminski.
Refiro-me ao ensaísta, cuja agudeza concentrada dialoga com a dicção de seus versos. Em Inutensílio, incluído em Anseios Crípticos (Edições Criar, 1986), a invenção linguística nutre a crítica: "A rebeldia é um bem absoluto. Sua manifestação na linguagem chamamos poesia, inestimável inutensílio". O fecho do ensaio poderia evocar a letra de suas muitas canções: "Pra que por quê?". Pergunta que desestabiliza a prosa do cotidiano.
Penso também no tradutor, cujo aprendizado de idiomas apurou seus instrumentos de criação. Ao transcriar do inglês, francês, latim, grego, japonês, espanhol, Leminski se armava para o bom combate: "Um dia / a gente ia ser homero / a obra nada menos do que uma ilíada"; e, mesmo se o resultado se cumpre às avessas - "por fim / acabamos o pequeno poeta de província / que sempre fomos" -, o que pesa é a ampliação do repertório, esclarecendo sua afinidade com a poesia concreta.
Recorde-se ainda o autor de biografias sempre sucintas - saíram numa coleção de bolso da Brasiliense - e de uma agudeza desconcertante. Jesus a.C. (1984) conduz o leitor à busca do "signo-Jesus"; isso sem mencionar as traduções dos textos evangélicos a partir do grego, em cotejo com a versão latina de São Jerônimo.
No estudo sobre Cruz e Sousa (1985), a circunstância biográfica do poeta negro, emparedado numa sociedade escravocrata, vira motivo poético: "Afinal, que é a poesia senão discurso-desvio, mensagem-surpresa". O gênero biográfico favorece o entendimento da literatura como decisão existencial. Daí a importância de Matsuó Bashô na obra de Leminski, pois a escrita da vida do poeta japonês (1983) equivale a um acerto de contas com suas escolhas: "Bashô submeteu-se a duas disciplinas igualmente rigorosas, à altura de um ex-samurai. O aprendizado da cultura e da poesia chinesa. E a prática zen".
Por último, mas não menos importante, a ficção. Em 1975, Leminski lançou Catatau (edição do autor), um dos pontos altos de sua obra; prosa experimental em diálogo com James Joyce e Haroldo de Campos, entre muitos outros. Discurso do método de ponta-cabeça, Renatus Cartesius, vale dizer, René Descartes, é trazido para o Nordeste brasileiro pelo Conde Mauricio de Nassau. Num solilóquio em que palavra puxa palavra, a alta voltagem da prosa poética expõe o curto-circuito das coordenadas cartesianas nos trópicos: "Se fosse uma cobra já tinha te amordaçado! Vê se não era. Antes não eram. Vê se não erra. Agora é que são elas. Vê, senão erra!".
No universo de Leminski, livro também puxa livro. Em 1984, ele publicou Agora É Que São Elas (Brasiliense). Nessa lúcida experiência lúdica, ele imaginou uma estrutura textual que subverte as teses de Vladimir Propp acerca dos contos populares. O pesquisador russo analisou mais de 400 narrativas, identificando 31 funções recorrentes. O romance de Leminski tem 31 capítulos, mas eles desordenam as conclusões do estudioso. Leia-se o trecho: "Quando acordei, meu primeiro pensamento foi para o velho Propp, que eu tinha deixado dormindo no sofá do consultório, a noite anterior. Telefonei direto, 223-7866, uma, duas, três, trinta e uma vezes, e nada".
O nada que é tudo - no dizer de outro poeta. No caso de Leminski, foi preciso apropriar-se da tradição literária como um todo; Oriente e Ocidente, como Octavio Paz também o fez. Num comentário da tradução de Satyricon, o poeta parece ter esboçado seu epitáfio: "Entre trair Petrônio e trair os vivos, escolhi trair os dois, único modo de não trair ninguém".
De fato, único modo de dar corpo ao projeto: "Vai vir o dia"...
Fonte :
Estadão.com.br
JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA É PROFESSOR DE LITERATURA COMPARADA DA UERJ
Nenhum comentário
Postar um comentário