As
tragédias da TV
Não olha!”
Consegui abrir um olho por entre os dedos de minha mãe e olhei. Como não olhar
quando alguém grita “não olha”? Jamais me esqueci da mulher deitada de bruços
no asfalto sobre o sangue e as frutas da feira. O motorista de táxi falando com
o guarda, desesperado. Fiquei dias com aquilo. Não era ruim. Nem bom. Era a
vida pulsando. Sempre que minha mãe gritava “não olha”, era óbvio que
tentávamos olhar. Quem não quer ver até onde chega a vida?
A casa de minha
avó era uma casa grande, dessas casas de rua cada vez mais raras. Ouvia-se
latido de cachorro, passarinho cantando no abacateiro e freada na esquina. A
casa ficava próxima de um cruzamento perigoso e bastava ouvirmos o cantar dos
pneus para que nos atropelássemos em corrida até o portão. Por que gostamos de
ver tragédia? Gostamos? Sou do tempo que o locutor do jornal pedia às famílias
que tirassem as crianças da sala, porque as imagens a seguir eram fortes
demais. Hoje, isso parece uma loucura, mas confesso que fiquei sem saber o que
fazer quando Nino quis ligar a TV pra ver a matéria do massacre de Realengo,
por exemplo. O que deveria dizer ao rapaz? Não? Não vamos ver isso e pronto?
Lembrei do “não olha” de minha mãe e achei que era melhor ver e conversar pra
tentar digerir junto com ele tal barbaridade. Mas vi imagens que realmente não
contava ver. Eu não sabia que se podia usar livremente imagens de câmeras de
segurança no jornal da TV. Pode? Por que não poderia, já que temos agora
cinegrafistas ocultos em praticamente todos os lugares do planeta, o Grande
Irmão que nos observa a toda hora e lugar e fornece imagens inacreditáveis para
a mídia sem sequer correr perigo de vida? Por que não poderia? Vamos então
assistindo, nos acostumando e ensinando nossos filhos a se acostumarem com
meninos ensanguentados em pleno pedido de socorro, com o susto na hora da bala,
com cabeças rolando, corpos caindo, facas sendo enfiadas, com a tentativa vã do
rapaz que queria ficar pelo menos com os documentos antes do tiro no caixa
eletrônico, vamos nos acostumando a ver impunemente a hora H, muitas vezes em
plena padaria. Aí o pequeno pergunta a você: se filmaram por que não prenderam
o ladrão? Não filmaram, meu amor, filma-se! Tudo e todos estão sendo filmados,
em todo lugar, todo o tempo, mas isso não significa exatamente proteção.
No outro dia
vem o outro, com a telinha na mão: “Mamãe, deixa eu te mostrar um vídeo? Olha o
que aconteceu com o motoqueiro.” Era uma corrida de motos e eu achei que ia ver
mais um desses vídeo/acidentes da internet, onde você quase ri da acrobacia,
porque não vê a ambulância chegando depois. Mas o que o pequeno queria me
mostrar era o estraçalhar de um motoqueiro, como se fosse um boneco num filme
de ação. E não era. Eram simples imagens de um celular de plantão. Não comi a
sobremesa. Pensei nas imagens trágicas de minha infância contadas nos dedos.
Nossos filhos vão perder a conta. Não sei o que fazer. Dá pra fazer alguma
coisa? Será que compreenderão melhor a vida a partir disso? Não sei.
DENISE
FRAGA é atriz, casada com o
diretor Luiz Villaça e mãe de Nino, 14 anos, e Pedro, 12 e-mail: dfraga.colunista@edglobo.com.br
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