Caetano Veloso versus Chico Buarque
Um dos grandes privilégios da arte brasileira é ter produzido dois artistas tão extraordinários. Musicalmente, não tenho dúvida, perdem apenas para Tom Jobim.
Caetano Veloso completa 70 anos e a mídia não perde viagem. Convenhamos, vender notícia é o fim inscrito na natureza do seu funcionamento. Visando alcançá-lo, ela não mede princípio. Essa questão, de nítidas ressonâncias éticas, é tão velha quanto o ovo ou a galinha. Quero dizer, há críticos da mídia que a responsabilizam por alienar o público; outros, notadamente os que fazem a mídia e dela vivem, replicam alegando que vendem o que o público quer. Como não tenho resposta para a questão, nem sei de quem a tenha, retomo o caminho do qual me desviei.
A mídia não perde viagem, como dizia, e assim cuida de reacender uma rivalidade já esquecida. Quem é melhor: Caetano ou Chico? Para início de conversa, a rivalidade é invenção da mídia, não deles. Irrompeu no auge do tropicalismo, quando Caetano, Gilberto Gil e outros anárquicos astutos levaram ou fingiram levar a sério o lema: é proibido proibir. Se na França, de onde proveio o lema, o cassetete baixou sobre os libertários, o que dizer da ditadura brasileira? Bem, deu no que deu. Como todo mundo sabe disso, vou em frente. Antes esclareço a expressão “anárquicos astutos”, que não entrou no parágrafo por acaso. Chamo a atenção dos ingênuos, que ouvem na música apenas música, para o fato de que o tropicalismo foi um investimento astuto dos seus líderes, uma estratégia para converter o mercado da arte de massa em ascensão no Brasil em forma artística e trampolim para o estrelato.
Foi nesse contexto que a mídia e críticos de vanguarda de notável talento (penso antes de tudo em Augusto de Campos) forjaram a rivalidade. Reduzida ao essencial, dizia-se que Caetano simbolizava a vanguarda artística, a música de invenção para a massa. Apostava-se também no célebre trocadilho de Oswald de Andrade, um dos inspiradores do tropicalismo: um dia a massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico. Escrevo sem aspas porque estou citando de memória. Hoje o trocadilho parece hilariante, mas os vanguardistas acreditavam piamente na inteligência e refinamento educável da massa. Não era à toa que eram de vanguarda.
Voltando ao enredo, se Caetano simbolizava o novo (não confundam com novidade, coisa que hoje se forja muito mais do que naqueles tempos ainda relativamente pudicos em termos de ética de mercado), a invenção sintonizada com a montagem de uma sociedade de consumo moderna, Chico, coitado, foi reduzido a símbolo de um passado feito de realejos, serenatas, Carolinas na janela, um Noel Rosa de viaduto, um tocador de cavaquinho num megashow de rock. É claro que a chama alastrou-se chamuscando os astros em competição, até então amigos. As tensões e divisões daí decorrentes afetaram também outros astros já estabelecidos ou em ascensão, como seria de prever, mas Chico e Caetano eram as estrelas maiores do firmamento televisivo. Logo, seria natural que a mídia concentrasse os refletores sobre os dois. A rivalidade tornou-se notícia de vida longa e lucrativa. Os astros se reconciliaram publicamente num célebre show realizado em Salvador, depois do exílio de ambos, mas ainda sob vigilância severa da ditadura.
A ditadura recolheu a dentadura, e outros instrumentos mais atemorizadores, a Globo fez as pazes com Chico, censurado durante anos, e em meados dos anos 1980 produziu uma série de shows sob o título Chico e Caetano. Claro que o sucesso foi imenso (eu, que há anos não via televisão, vi e gravei tudo) e um dos programas, pelo menos, mereceria uma edição em DVD: o que teve Tom Jobim e Astor Piazzolla como convidados. Como veem, isso era biscoito fino para a elite do público de massa, o paradoxo é intencional, que alegremente se diluiu em farelo. Se antes Chico ludibriava a censura ditatorial cantando: “hoje você é quem manda/ falou tá falado/não tem discussão…”, hoje me queixo em vão do mercado, que fala e vende o que quer à nossa subserviência consumista.
Que faz um astro ético diante da potência diluidora do mercado? Caetano Veloso, com seu talento camaleônico, faz o jogo da mídia e do palco com astúcia refinada pela prática que remonta ao tropicalismo, com seu narcisismo de muitos gumes. Quanto a Chico, de temperamento mais retraído, com um sentido de coerência mais retilíneo, mede à distância a corda bamba na qual Caetano se deleita em fazer malabarismos. Em suma, cada um com seu talento e modo de ser. O que é inegável é a importância da obra que produziram. É esta que importa e por isso não convém rebaixá-la à disputa fútil de um Fla-Flu, pois a isso se reduz a rivalidade promovida pela mídia.
Artistas de múltiplos talentos, Caetano e Chico têm personalidades e formas de expressão muito distintas. O primeiro, justificando seu narcisismo ostensivo, se transfigura no palco, na criação acionada pelo contato vivo com o público. O segundo, contrariamente, é artista cujas pérolas são lapidadas em estado de reclusão. Sendo assim, Chico resiste ao palco, se retrai no contato direto com o público. Para ele a criação estética é o avesso, por exemplo, do happening, tão afim ao estilo irreverente e despachado de Caetano. Prolongando no mais alto sentido a tradição lírica, compreendida tanto literária quanto musicalmente, Chico trairia sua força criadora se embarcasse num movimento como o tropicalismo. O que importa é que se renovou extraordinariamente. Calou assim a crítica que o opôs à rebeldia tropicalista levianamente reduzindo-o à medida de um artista ultrapassado.
Nos anos 1970, ambos amadureceram e renovaram sua obra. Chico associou a música ao teatro, experiência já iniciada na década precedente, também ao cinema. Caetano também compôs música para cinema, mas no geral confinou sua obra à música e à crítica ocasional, sempre exercida em tom inteligente e provocativo. O Chico tardio concentrou-se na paciente elaboração de romances que lhe têm valido o apreço da crítica e sobretudo do leitor. É claro que, apesar do seu talento literário indiscutível, o romancista se beneficia da fama do compositor e cantor. Quanto a Caetano, escreveu o melhor livro que temos de memórias da efervescência musical dos anos 1960 relacionada ao contexto social e ideológico. O leitor sabe que me refiro a Verdade tropical.
Portanto, concluo repisando o que acima escrevi: cuidemos da obra, opinemos sobre ela à margem do espírito barato do Fla-Flu alimentado pela mídia interessada apenas em vender notícia. Um dos grandes privilégios da arte brasileira é ter produzido dois artistas tão extraordinários. Musicalmente, não tenho dúvida, perdem apenas para Tom Jobim. Mas este está acima de comparações e paralelos. Tom é simplesmente o maior compositor popular do século 20. E notem que não usei nenhum qualificativo geográfico, isto é, não afirmei que ele é o maior do Brasil. Tom é simplesmente o maior e ponto.
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