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DEPOIS DO TRABALHO, AINDA FALTA TRABALHAR A RELAÇÃO [Fabrício Carpinejar]

Arte de Fraga
DEPOIS DO TRABALHO, AINDA FALTA TRABALHAR A RELAÇÃO

Amar não é suportar tudo. Aguentar qualquer coisa.

Não é porque você ama que o amor se faz sozinho.

Não é porque você conquistou quem desejava que deve relaxar.

Não é porque alcançou a independência financeira que já tem autonomia afetiva.

Quando chega em casa do trabalho, depois de oito horas de incômodo, da chuva de cobranças e prazos, cansado, estressado, faminto, não adianta afundar no sofá, esticar as pernas, esquentar algo e se apagar.

Não terá direito à solidão e ficar em paz. Não terá direito a não conversar. Não terá direito a não ser afetuoso. Não terá direito a assistir televisão sem ninguém por perto.

Se pretende se isolar, não ouse casar, não procure dividir o tempo e o abajur.

Quando regressa do serviço, acabou a vida profissional, porém começa a vida pessoal. E do zero.

Sua mulher não tem que tolerar seu desaparecimento, sua anulação, sua desistência pelos corredores.

Ela quer senti-lo, entendê-lo, percebê-lo.

A noite é manhã para o amor.

Quando retorna da rua, agora é o instante de trabalhar o relacionamento.

Da mesma forma em que seria demitido se ofendesse um colega, não desfruta de espaço para agressão e gritos. É a esfera da delicadeza, das pontas dos dedos no rosto, de emoldurar a confiança.

Controle-se, comporte-se, cuidado com o que diz, não se entregue ao cansaço.

Sua esposa nada tem a ver com aquilo que cumpriu à luz do sol. Não conta pontos sua dedicação no escritório.

É um novo turno, sem antecedentes, sem pré-história.

É a primeira vez durante o dia que trocará assunto com ela (que seja separando as melhores peripécias). É a primeira vez durante o dia que se dedicará a ouvi-la (que decore a intensidade das palavras). É a primeira vez durante o dia que passará as mãos em seus cabelos (que seja mais generoso do que a escova). É a primeira vez durante o dia que beijará sua boca (que seja com calma da janela). É a primeira vez durante o dia que presta atenção no que ela veste e como se veste (que seja com atenção de alfaiate).

Não há como trapacear. Não há como despistar, postergar para o final de semana.

É só você e ela.

Tome guaraná cerebral, emborque litros de café, triture amendoim com os dentes. Mas se mantenha acordado. Não se ganha um casamento empatando.

É o período de oferecer atenção integral - ela espera que confirme os motivos para estarem juntos.

Por mais absurdo que soe, assim que pousa sua pasta no chão da residência, inicia o expediente amoroso - todos que amam têm dupla jornada.

É acolher as dúvidas, abraçar demorado, preparar a janta, perguntar sobre os amigos, valorizar os apelidos, deitar próximo, não se distanciar do campo elétrico da pele.

Amar é muito mais grave do que uma profissão. Muito mais complicado. Não tem aposentadoria.


Publicado no jornal Zero Hora
Coluna semanal, Revista Donna, p. 6
Porto Alegre (RS), 19/05/2013 Edição N° 17437

Fabrício Carpinejar-poeta, cronista, jornalista e professor, mestre em Literatura Brasileira pela Ufrgs. Vem sendo aclamado por escritores do porte de Carlos Heitor Cony, Millôr Fernandes, Ignácio de Loyola Brandão e Antonio Skármeta como um dos principais nomes da poesia contemporânea.

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