O FLANELINHA [Patrícia Dantas]
No canto, ancorada em um poste, rente à calçada, estava uma cumbuca amaçada de alumínio, com restos de comida misturados, sem atração nenhuma ao olhar mais faminto; àqueles restos estavam recostados como sobras de uma refeição que não contentara, porque as experiências extraordinárias da alta gastronomia não estavam ali; supostamente, existia o dever cumprido de ter alimentado seu organismo para mais um dia de labuta. Pude reparar que sua boca ainda remexia a comida, um ato disforme, que não havia prazer em mastigar a última porção.
Talvez tenham passado despercebidas as manchas que existem em suas mãos, pois o movimento desconcertante da flanela, os restos da comida e o lugar perpetuado pelas belezas de um dia de chuva, que embala o mar na sublime calmaria e desnuda as pedras engolfadas pelo silêncio, magnitude e mistério do senhor das águas, tomaram o cenário que tanto embasbacava os transeuntes.
Nesse caminho e com toda essa narrativa já incrustada em minha mente, a passos lagos, eu caminhara em direção às delícias de um restaurante à beira-mar, para saborear um prato diversificado e beber algo para acompanhar a refeição. Posso confessar que a história ficou gravada a cada movimento dos talheres, das pessoas ao redor, dos garçons que passavam com os pedidos, dos instrumentos dos músicos que mudavam as tonalidades, enfim, o horror da verdade já mostrara seus demônios insustentáveis dentro de mim.
Enquanto isso, o olhar atento do flanelinha transitava entre os cenários; os carros, que estacionavam junto à calçada à beira-mar, os clientes que estavam saindo do restaurante, do outro lado da rua; e seu mundo decadente, conformado pelas sobras de uma sociedade atônita, sobrevivente das delícias da superficialidade bestial que acode o mundo contemporâneo.
Já me acostumei com a terrível verdade de que tenho faro ácido para as misérias humanas, detecto os instintos mais febris e desgraçados que percorrem vielas, subúrbios, bairros de elite; estão entre nós, passeiam pelas calçadas dos bares, restaurantes, supermercados, lojas, avenidas movimentadas; andam, perambulam de forma demente, sem rumo, lugar ou algum compromisso marcado. Quando os vejo, chamo-os em meu inconsciente de tipos humanos, ecoam dentro de mim como uma música triste que quebra o mais fino vidro e rasga nossa pele à espera das surpresas fantasiosas.
E são esses tipos que me fazem respirar todos os dias e sentir a parte mais humana que existe dentro do homem; são eles, que negam o conformismo elaborado pelas mãos de ferro dos nossos governantes. Estes carrascos que incutem pragmatismos inúteis, criam campos de batalhas e mascaram a sociedade com campanhas fúteis, custeadas com o dinheiro de tipos humanos como o flanelinha, os miseráveis das ruas, você, que está lendo essa crônica perniciosa e eu, que de tão inflamada pelas situações que me fazem sobreviver, tenho a missão de transmitir as futilidades da miséria alheia através da literatura, para que algum dia, quando vier o paraíso prometido, eu possa ver que meu protesto não foi em vão.
Participei da Focus - Antologia Poética VII, pela Cogito Editora: http://www.cogitoeditora.com/patricia-dantas-focus-antologia-poetica-vii/
Meu Blog: Intimidades de uma Escritora
http://intimidadesdeumaescritora.blogspot.com.br/
Portal BVEC (Biblioteca Virtual do Escritor Contemporâneo: http://www.portalbvec.net/Patricia_Dantas/
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