Engana-se quem pensa que a
literatura exige ineditismo. Não a essa altura das publicações
acumuladas. Mas há formas e formas de se contar uma história, e
desfechos distintos podem conferir maior força a um texto. Pensando
nisso continuamente, faço exercícios de refazer e desfazer histórias que
por alguma razão qualquer me convencem de seu potencial. O conto a
seguir já teve outros títulos, outros finais e mesmo outras etapas
narrativas, mas o cerne continua sendo um só – o desencontro ou o
descompasso de um quase encontro entre pessoas que não construíram um
vínculo dado como inevitável.
Vai pela calçada engolindo o sol com a pele, absorto com as marcas de
chiclete e tocos de cigarro que turvam o chão, mas nota o carro
passando. Percebe ou acredita perceber o veículo reduzindo a velocidade
sem se deter, o olho no retrovisor querendo voltar. Por algum tempo, bem
curto, reina a certeza de ter sido reconhecido. Fernando mantém o ritmo
e finge desatenção com o tráfego quando vira chega na esquina e escolhe
ir no sentido oposto ao deslocamento do carro. Não quer saber a decisão
da condutora quanto a seguir adiante ou investigar, congela a imagem do
seu olhar no espelho e repete-a para si mesmo em cada passo que segue
imprimindo sobre o pavimento. Ao passar a mão pela barba, sente o vento
tocar a claridade dos próprios olhos, o ar é frio e o remete à água que
tantas vezes colhera do poço, debruçado na mureta de tijolos úmidos onde
as vezes cresciam avencas, indeciso entre o medo de não atender sua mãe
a tempo e a curiosidade pelo túnel vertical, interrompido pelo espelho
denso que ele rompia com a queda do balde. A lâmina dágua onde via sua
silhueta recortando o céu era desassossegada pelos respingos que se
desprendiam do balde sendo içado - as gotas estemeciam a
superfície líquida durante todo o percurso da corda na roldana -
diferente do reflexo daqueles olhos no espelho retrovisor, uma imagem
quase estática, sem perturbações. Teriam mesmo sido capazes de saber
quem ele era?
Irma gosta de dirigir por ruas planas, de trânsito sempre calmo.
Aproveita o dia de céu despido e, como um deboche ao frio, foge antes do
final do expediente para percorrer o bairro onde cresceu, mesmo sabendo
que não reencontrará a antiga casa porque em seu lugar existe agora um
centro comercial. Repete essa rota com frequência e, quando o faz,
acredita estar sendo movida pela melancolia, mas executa o percurso de
modo mecânico, submersa na música alta que inunda o interior do
importado; mal percebe as fachadas antigas entremeadas de novos
edifícios e ofuscadas pelos galhos despidos de folhas. Agora há pouco,
porém, a proteção sonora parece não ter impedido que notasse o sujeito
caminhando a esmo, sua íris aguada em tons de mel e folha. Foi rápido
como um susto, mas sua inquietação, nem curiosidade, foi quase nada.
Fernando aferrou-se ao caminho, mas continuou se perguntando sobre a
consequência do encontro. A informação da morte do pai foi dada em um
dezembro de quando a menina ainda desconhecia o significado do nunca
mais e de muitas outras incertezas. Ele entrou para a memória da pequena
através da imagem em preto e branco, talvez hoje amarelada, que sua mãe
tivera a consideração de não destruir. Um homem alto, de bigodes
volumosos mas bem desenhados, os cabelos muito escuros e fortes,
herdados da família de origem árabe, destacava os olhos cuja cor incomum
ela não decifraria pelo retrato.
Não era lógico pensar que ela o tivesse reconhecido. Somente
alucinação poderia fazê-la associar o pedestre de barba cerrada,
levemente grisalha, ao homem da fotografia que talvez já nem conservasse
consigo. Não havia motivos para suspeitar que delirasse assim. O carro
seguiu seu caminho, não contornou a quadra para conferir sua fisionomia.
Irma não é uma moça suscetível a insanidades, mesmo essas
passageiras, fomentadas pela correria da vida moderna. Foi inédito
aquele assombro com o olhar de um anônimo, mas foi um desconforto
isolado, ficou solto na tarde e não plantou dúvida em seus passos
seguintes. Não reconheceu nada de íntimo naquele olhar, apenas sentiu
umas saudades indefinidas e acabou concluindo pela inutilidade de
continuar passando por aqueles caminhos de infância em que já não
reconhecia nada dos tempos antigos
Fernando aceitou a existência sem ruídos durante muitos anos e, fosse
por culpa ou orgulho, julgava necessário manter a promessa de
conservar-se ausente. Cometera, acreditava, uma primeira imprudência.
Seria um sinal de que se cansava do anonimato ou de que já o considerava
dispensável? Ciente dos hábitos da jovem, poderia ter evitado aquela
rua para chegar ao seu conjugado, onde passou o resto da tarde lembrando
do desencontro. O olhar dela tem faíscas e desescurece quando ela se
agita, pensou Fernando, emocionando-se.
À noite, quando preparava a refeição para consumir sozinho, como de
costume, Fernando ainda fazia esforço para se justificar consigo mesmo
pela covardia de não ter voltado mesmo quando a ex-mulher se casou
novamente. Questionava a conivência com a mentira que convertera a
menina em órfã, desnecessariamente. Justo quando acreditava que venceria
aquela hesitação que o levava a abandonar os segredos do poço para
atender a pressa da mãe nos tempos de menino, na verdade ele apenas
carregava o balde para satisfazer o rancor da esposa traída.
Não se arrependera do romance com Antônia, que o fizera despertar
para as cores do riso, mas não se perdoava, especialmente após a morte
da amante que nunca lhe dera a alegria de ser pai novamente, por ter se
deixado riscar da história de Irma.
Perguntava-se, olhando para os restos de comida no prato, se ela
estaria agora tão inquieta como ele; se estaria, como nas noites de
vento de sua primeira infância, sem querer desgrudar-se da vidraça,
olhando os galhos das árvores agitarem-se como se dançassem em festa,
uma comemoração para a qual não fora convidada mas que se alegrava em
assistir. Era no colo dele que a menina se divertia vendo os efeitos do
vento, mas ele prestava pouca atenção aos corcoveios da criança porque
permanecia na janela para esperar a passagem e os olhares de Antônia.
Se tivesse a resposta para suas questões, Fernando talvez se
decepcionasse, pois não restou em Irma nenhuma impressão do incidente da
tarde e menos ainda daquele encanto que a brisa agitando as plantas lhe
provocava quando muito pequena. Aliás, não se recordava mesmo de
nenhuma ocasião em que tivesse sido acalentada pelo pai, embora sua mãe
houvesse comentado em diversas ocasiões sobre o orgulho que ele teria de
sua beleza e de seus talentos se estivesse vivo.
Quando Fernando recolheu a louça para lavar, Irma acabava de cerrar
as cortinas da grande janela do seu quarto. Não gostava de noites
ventosas e para evitá-las refugiava-se na música com seus grandes fones
de ouvido.
Maurem Kayna
é engenheira florestal, baila flamenco e se interessa por literatura
desde criança. Depois de publicações em coletâneas, revistas e portais
de literatura na web resolveu apostar na publicação em e-book e começou a
se interessar por tudo que orbita o tema, por acreditar que essa forma
de publicação pode ser uma das chances de aumentar o número de leitores
no Brasil. Autora da coletânea de contos Pedaços de Possibilidade,
viabilizado pela iniciativa da Simplíssimo. Páginas na internet: mauremkayna@uol.com.br - mauremkayna.com/ - twitter.com/mauremk
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