Junco persegue
metáforas e achados sem lograr poemas
Por transparência a capa
do conjunto de poemas Junco (“junco” também é metonímia de
embarcação, no mesmo sentido em que o são “lenho” e “madeiro”) funde e justapõe
as imagens do cachorro e do tronco mortos; aquele em decomposição à margem da
rodovia e este, fungível, à beira da praia. A tentativa, ou a determinação da
decomposição sígnica por meio da autorreflexividade redundante, maníaca e
insistente, quer do serialismo verbal visado no desenho sintático dos poemas,
quer do colecionismo obsedante na sequência de fotografias que embalsamam e
estetizam as carcaças animal e vegetal — graças ao registro cotidiano de suas
ocorrências —, pode nos servir de ponto de apoio para a compreensão liminar do
recente livro de Nuno Ramos.
Junco, à primeira vista,
resta cindido entre o não-verbal e o verbal. “Cindido”, como assim? Se
a media escolhida é o objeto livro, então não há (ou não deveria
haver) hesitação com relação ao verbal. Essa situação, que não precisa ser
necessariamente dilemática ou neutralizadora de consequências estéticas mais
relevantes, pode ser que se relacione com a vocação ambidestra de Nuno Ramos:
escritor e artista visual. Mas não é o que acontece. A datação dos poemas, a
revelação em nota sobre os catorze anos de elaboração (com largas interrupções)
do conjunto, a observação desinteressada sobre os muitos leitores conquistados
em fase anterior à publicação da obra, enfim, essas informações adicionais tendem
mais a incutir simpatia e afeto ao “processo de criação” do que nos solicitar
uma atenção efetivamente crítica e isenta ao volume que, infelizmente, se abre
agora à nossa leitura expondo algo de sua intimidade indecorosa.
Não obstante as objeções
à possível impertinência do meu ponto de vista, não posso deixar de assinalar
aqui (ou de pôr as coisas em relação, melhor dizendo) que as séries de fotos
entremeadas aos blocos de poemas se mantêm mais firmes do que eles (os poemas,
que, de resto, justificam a aparição do livro). Isto me faz supor um leve
tremor, já que, nessa relação se esperaria do verbal algum protagonismo — mas,
se enxergo as coisas mais ou menos bem, Nuno Ramos parece não se preocupar com
tal hierarquização e nisso está correto. De qualquer sorte, a certa altura,
cheguei mesmo a considerar os poemas como grandes legendas pretensiosas,
arranjadas e diagramadas nas páginas para fazer falar, a contrapelo da escassez
informacional contida nas imagens, aquilo de que elas não podem falar de modo
nenhum.
No entanto, ao contrário
do apetite discursivo, por exemplo, de um curador de arte que se mobiliza — sem
prescindir de certa dose de razão — em explicações à intraduzibilidade
constitutiva da obra de arte não-verbal, os poemas de Nuno Ramos, versões
legíveis, mas não inteligíveis do não-verbal, não conseguem vencer a margem de
intransitividade em que se consomem a si mesmos. A interrupção intransitiva, ou
o fracasso semântico, não é corolário de uma determinação, é antes uma sorte de
escolho que está a caminho de algo e que obsta a linha e a linguagem. Só nesse
ponto acho consequente estabelecer relações entre o autor de Junco e
João Cabral de Melo Neto e seu, por exemplo, Cão sem
plumas (1949-50). Com efeito, os poemas do artista são exemplos dessa
poesia intransitiva que Cabral põe em questão.Que as linguagens se aproximem em
um cotejo disjuntivo e não por meio de negaceios lenientes levados a efeito
visando limar a rispidez necessária que vem à tona quando textos são postos em
relação.
Embora seja possível
sondar alguns índices de contato e de contrastes entre os dois poetas, acho
difícil, para o caso em tela, não lançar mão da conhecida advertência:
“guardadas as devidas proporções…”. Flora Süssekind, por exemplo, pretende
avizinhar a poesia de Ramos de certos estilemas cabralinos, mas para isso cunha
uma metáfora que a bem da verdade interpõe entre ambos um intervalo quase que
intransponível, já que, segundo a crítica, a linguagem de Junco faz
um movimento “largamente expansivo” de assédio a Uma faca só
lâmina (1955) —ou a Cão sem plumas —, conjunto evocado pela
analista para proceder às correlações. Ora, esse aceno “largamente expansivo”
de Nuno Ramos ao poeta João Cabral só cabe mesmo nesse advérbio e nesse
qualificativo mercê do gesto mais comiserado do que generoso (na esperança de
ser pertinaz) de Süssekind. A parábola de aproximação é tão ampla que, não
raro, vemos Nuno Ramos sair da órbita do seu modelo. O objetivo de Flora
Süssekind não deve ter sido operar uma despropositada subversão de um marco
poético de nossa tradição, confrontando-o com um poeta em progresso. Invocar
a referência meramente nominal, a
saber, relógio, bala e lâmina, senhas sem peso
(dispositivos-clichês próprios para a colagem) de que se servem os poemas
dispersivos de Ramos, ou ainda, as carcaças de cachorros mortos,
troncos-lenhos, despojos de árvores cuspidos e lixados pelas ondas na areia da
praia; enfim, jogar estes fragmentos sobre a mesa a título de menção a um golpe
de citações, me parece muito pouco e forçado, além de denunciar uma desmedida
boa vontade da crítica para com os esforços poéticos do consagrado artista. O
que teria tudo isso a ver com o rio-cão-sem-plumas, essa metáfora sinestésica
cambiante — cujo ritmo prepara a narrativa-rio do livro O Rio (1953)
publicado a seguir e onde Cabral, em parceria com o leitor, se propõe a compor
“una prosa” —, essa estrutura verbal que já não é surrealismo, mas que ainda
não chega à agudeza prolixa da lâmina mais pernambucana que matemática do poeta
de Escola das facas?
Junco (os poemas de,
e não as imagens) é ligeiro em sua pretensão vagamente litúrgica no arranjo da
linguagem, samba do branco doido nostálgico do oráculo de Delfos, diz, assim,
Nuno Ramos: “Perder é uma argila”; “Perder é o selo de uma carta…”; “Irmãos da
matéria/ no curso de volta/ à confraria/ cinza/ de antigos corpos.”; “Ama,
disse meu olho/ os dois íntimos contrários/ areia e mar”; “O chão é a grande
pergunta…”; “Um lugar não é um ganido…”; “Um lugar não é uma ave…”; “Não há
trigo/ mas sal, escamas…”; “O que de mim se ouve/ em voz e canto não é sopro…”.
“Nunca houve/ vácuo, nunca um/ nada vago”. Na perspectiva de tramar os fios
informacionais de um aos fios do outro, não se pode com isso glamourizar o
contemporâneo, nem muito menos dessacralizar o clássico a qualquer custo.
Podemos, sim, reconhecer que a fruição estética exerce seu poder e se projeta
sobre as aparentes disjunções entre o atual e o antigo, e torna tal oposição se
não irrelevante pelo menos secundária. O leitor hedônico extrairá, talvez, uma
grande satisfação desse diálogo, pois o que justifica a leitura — as transas e
os transes de um texto —, não é a sua antiguidade ou novidade, mas o prazer que
ele pode proporcionar a quem tiver apetite para experimentá-lo na fatura de
múltiplas relações.
Os poemas
de Junco são a imitatio piorada de certas constantes da
arte contemporânea que é de matriz metafórico-objetual, isto é, lida com
possibilidades imaginativas e associativas livres no intuito de presentificar
ou reificar uma imagem-pensamento em um particular espaço-evento onde objetos
se relacionam e acabam por simplesmente materializar um símile mental na forma
do trocadilho transitável. Por essa razão, a arte contemporânea se constitui
como discurso cenográfico antes de tudo; cenografia performativa para uma
justaposição de coisas e objetos: tautologias, coleções de nulidades resgatadas
ao inferno biográfico do artista. A metaforização enquanto diluição perdulária,
cacoete charmoso: “Longo e longo desenrolar de imagens, como se o poeta
tentasse recriar a coisa dando-lhe mais e mais nomes, num processo mágico
fetichizante” (Mario Faustino dixit). Nuno Ramos projeta a metáfora
ornamental sobre a metáfora interpretativa. Exemplos: “cadáver de uma árvore
boiando”; “Ruga/ de um urubu na espuma”; “nuvem de camurça”; “asas de areia
quente”; “pentes de terra, livros de cedro”; “noites de giz”; “os alicates das
mandíbulas”; “coração de pedra, coração de musgo”; “a cartilha do sopro”; “a
cusparada/ da chuva”; “meu sopro é de areia/ meu rim é de areia”.
João Cabral de Melo Neto
em seu Cão sem plumas faz, por seu turno, um jogo de plano e
contraplano entre metáfora e anáfora. O poema, embora calcado ferreamente sobre
a analógica da similitude, nos impõe a sua cadência, sua figura rítmica, mais pela
reiteração da conjunção adverbial comparativa “como” do que pelo inesperado das
comparações. O andamento anafórico dos versostraduz o sentido em cadência. Quando
não o vislumbramos ouvimos o rio espesso: “imagem de cão ou mendigo”. Um
excerto: “Aquele rio/ está na memória/ como um cão vivo/ dentro de uma sala./
Como um cão vivo/ dentro de um bolso./ Como um cão vivo/ debaixo dos lençóis,/
debaixo da camisa,/ da pele.”.
Caberia
acomodar Junco na prateleira dos livros de “artista em férias”? Foi
mais ou menos com uma blague análoga que Manuel Bandeira deprimiu a poesia de
Oswald de Andrade. O poeta de Libertinagem,vestindo, por seu turno, a
máscara do antropófago iconoclasta, se referiu aos poemas do companheiro
modernista como produtos de “um romancista em férias”. Por favor, não pretendo,
aqui, deprimir ninguém. Mas se a analogia vale para o renomado artista Nuno
Ramos, podemos refinar a diatribe, porquanto a consecução desses poemas de
“artista em férias” já incorpora uma rotina parcialmente reconhecida. Desde Cujo (1993)
até Junco (2011), Ramos publicou mais quatro títulos. Talvez não seja
adequado tratá-lo como um poeta bracejando comprimido no intervalo das férias
do artista visual. Como se dizia, em um tempo não muito distante, Nuno Ramos se
afigura um multi-instrumentista.
Por outro lado, sem
pretender ser pessimista ou estraga-prazeres, se já é complicado, como uma vez
argumentou o craque de futebol Ademir da Guia, “manter, em qualquer profissão,
sempre o nível mais alto que se consegue alcançar” — e o jogador não livra nem
Pelé, nem Picasso dessa lei —, que dirá o sujeito que se desdobra em duas ou
mais expertises. Em algum momento, nesse processo de prestidigitação
e de desequilíbrio dinâmico, a embarcação fará água. No caso de Junco, os
poemas indicam a parcela murcha do compósito. O aspecto menos entusiasmante.
Seus poemas: êmulos, carcaças sub-baudelairianas. E meu senso de injustiça me
obriga a registrar, para efeito de comparação, o poema também anafórico “Boi
morto” de Manuel Bandeira, poema “espantosamente boi”, que é presentificado por
meio de uma música reiterativa, levada — quando enunciada — ao limite
do fade out para o branco do silêncio e da página. Não é meu desejo,
com essas anotações marginais, apresentar Nuno Ramos como um poeta ruim; não.
Só intento com isso afirmar que ele está longe de ser um bom poeta. Melhor que
Mariana Ianelli e Age de Carvalho, o rapaz é. Não é muito, mas de algum lugar
se deve começar.
Não é novidade para
ninguém que um poema, em sua construção, incorpora achados, efeitos fônicos,
trocadilhos, diatribes de sentido e som, enfim, esses elementos que Roman
Jakobson chama de “equações verbais”. Um poema pressupõe esses insumos ou
escapes, mas não se esgota neles. Junco é um livro que congela, lista
uma série desses recursos que, no entanto, não resultam em poema relevante.
Nuno Ramos persegue metáforas e achados sem lograr poemas. Tem em mãos algumas
dessas equações, mas não poemas.
Ronald Augusto
nasceu em 1961 no estado do Rio Grande do Sul. O escritor atua em
inúmeras áreas: é músico, letrista, ensaísta e possui ainda um trabalho
significativo no âmbito da literatura. Como poeta alcançou
expressividade no cenário nacional e até mesmo mundial, de tal forma que
suas produções foram publicados em revistas literárias, bem como em
antologias, dentre elas destacamos: A razão da Chama, organizada por
Oswaldo de Camargo (1986), a revista americana Callaloo: African
Brasilian Literature: a special issue EUA (1995), a revista alemã
Dichtungsring Zeitschrift für Literatur, e outras.
twitter.com/ronaldpoesiapau
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