Passeata
– “Abaixo a
corrupção! Chega de ladrão!” “O povo, unido, jamais será vencido! O povo,
unido...”
– Oi, dá licença...
Você se importa de segurar o meu cartaz enquanto eu amarro o tênis? – a garota perguntou,
levantando do rosto a máscara do anonymous.
– Não, companheira,
claro que não!
– Teresa Cristina
Alves de Albuquerque !
– O quê?
– Meu nome... Teresa
Cristina Alves de Albuquerque! Mas pode me chamar de Teresa Cristina Alves!
– Ah, tá, Carlos
Eduardo, mas pode me chamar de Caco! Prazer!
– Está desamarrado.
– Eu sei, pode
amarrar, eu já disse que seguro seu cartaz
– Não, o cadarço da
sua bota... Também está desamarrado!
– Coturno. É um
coturno!
– Ah, mas parece
bota! Achei que bota, quer dizer, coturno, fosse coisa de milico! Da repressão!
– Não mesmo, o Che
fez uma revolução usando coturnos.
– Quem?
– Meu Deus, você
não conhece? Che Guevara...
– Ah, tá... o
Che... Tô sabendo... O da boina! Meu avô falou dele. Disse que os charutos
ficaram mais caros depois da revolução!
– O ópio do povo!
– Quem? O Che?
– Não, os charutos.
– Uhmmm. Mas meu avô
sempre compra... Havana!
– Tua família é de
burguês capitalistas, aposto!
– Totalmente... Se
eu tiro nota baixa eles vão logo cortando minha mesada, mas se eu tiro nota
boa, nada de aumentá-la.
– É a “mais valia”!
Não interessa o que a gente faça, a mesada é sempre igual! E minúuuuscula!
– Isso... E se
bobear, ainda diminui!
– O importante é
que ele, o Che, libertou seu país das garras do capitalismo.
– Seu país? Mas ele
não era argentino
– O Che? Não, isso
é intriga da CIA, para desmoralizá-lo.
– Ah, entendi!
– Propaganda
imperialista, saca?
– Anrã!
– “Caminhando e
cantando e seguindo a canção, ...”. Vamos lá, Tê, mais alto! “Somos todos
iguais, braços dados...”
– É a sua primeira
passeata, Teresa Cristina?
– Não, claro que
não! Participei de uma no colégio reivindicando saias mais curtas! A diretora é
muito careta, sabe? Agora estamos tentando organizar outra passeata para trocar
a cor do uniforme. A escola é internacional, mas não entendem nada de moda! E
você, Caco? É a sua primeira vez?
– Eu? Tsss... Não,
não... Tô escolado. Ajudei a organizar um protesto contra o preço do lanche na
cantina. As bases se unindo, entende? Primeiro pensamos numa greve de fome, mas
a galera não quis aderir. A militância exige força de vontade, mas nem todos
têm, então mudamos a estratégia para só comprar no barzinho em frente à escola.
– Deu certo?
– Quase... Só
depois descobrimos que era do mesmo dono... Tipo monopólio da atividade
produtiva, saca? Aí tivemos de negociar.
Você sabe como são os capitalistas... Eles até reduziram os preços, mas
passaram a colocar menos queijo no pastel.
– Típico da elite
dominante! Burgueses... Como os vinte centavos na passagem... Absurdo!
– É... Típico! Você
veio de ônibus?
– Não, né?! Minha
mãe que me trouxe. Você participou do protesto da PEC?
– Do que?
– A PEC...
– Ah, to ligado...
Não deu, tinha uma festa da galera bem no dia, mas eu postei uns lances no
face...
– Maneiro! Vamos,
Tê: “Ê, ô ô, vida de gado, povo marcado, ê, povo...”
– Sabe, Teresa
Cristina, eu acho que a revolução deve começar dentro da nossa própria casa,
entende? Tipo... cada um fazendo a sua própria parte!
– Como assim? Tipo,
cada um arrumando seu quarto?! – quis saber, com expressão preocupada.
– Não, né?! Melhor
que isso... Dividindo a grana do velho! Mas não é fácil. Uma vez tentei
convencer a Dodô, nossa empregada, a se unir a mim e tomarmos, juntos, o poder.
Prometi que ela ia conhecer a ditadura do proletariado. Ela se ofendeu e contou
pro meu pai.
– E aí?
– Fiquei preso. Uma
semana de castigo!
– Rolou tortura?
Oxi, se rolou...
Proibiu televisão, videogame, celular, internet...
– Internet? –
chocada – Como você fez pra entrar no face?
– Foi complicado! –
fazendo cara sofrida – Eles se prevalecem por ter a força do capital!
– É...
– Vamos lá... “O
Povo, unido...”
– Seus bótons, Tê...
Que legal! Onde descolou esse das “Diretas Já!”? É histórico! Puts, e aquele
então... Logo abaixo do Impeachment...
– Esse aqui? O do
one direction? Você também curte? Não é de plástico não, é de metal! Os de
plásticos são meio cafonas...
– Não, né?! Prefiro
um som mais da terra, tipo Charlie Brown Jr.
– Uhm...
– O seu bóton do
“Fora FMI” também é bacana, Caco!
– Anrã. Estiloso,
né? Ganhei de um amigo do meu pai. Ele, quando tinha a nossa idade, já tinha
sido preso duas vezes. Até já apanhou de cassetete de borracha.
– Uau! Que demais!
Num comício?
– Não, subtraindo uns
lances no supermercado. Ele achava que tudo devia ser socializado.
– uhmmm...
– Ei, pera aí, Caco!
Aquele boton ali, no seu peito, ao lado da foice e martelo, com orelhinhas de
rato... Por acaso seria...?
– Ah, nem repara, é só pra fazer número!
– Mas é o que eu
estou pensando?
– Unrum... Comprei na
Disney a primeira vez que fui lá!
– Você já foi lá
mais de uma vez? – quase não acreditando.
– Anrã – concordou
balançando a cabeça, orgulhoso – excursão!
– Caramba, meu
sonho é conhecer o parque do Harry Potter! Minha mãe prometeu pra quando eu
fizer quinze anos...
– Que nada, melhor
é a Splash Mountain... É animal... Adrenalina! Você precisa ver! Sem falar
no...
Jean Marcel-
Escritor, professor universitário, palestrante. É pai de dois
adolescentes. Um leitor voraz. Eclético, escreve contos, crônicas,
romances e infanto-juvenil. Possui o blog brisaliteraria.com
Assinar:
Postar comentários
(
Atom
)
Um comentário
Jean Marcel, adoro sua ironia fina, seu deboche elegante! Conheci um Anonymous pelo Face, falando que as faces ocultas são pressuposto de revolução. Uma semana depois, postava fotos de sua viagem a vários países da Europa, o que incluiu shows e passeios caros. Viva o socialismo tupiniquim! Amei seu texto, só para variar!
Postar um comentário