Cartas
à Ophelia- Fernando Pessoa
Ler a correspondência alheia é, alerta-nos a
autoridade, atividade criminosa. Que o leitor amigo aceite, portanto, o
saboroso convite a um ilícito voyeurismo: trata-se de desvendar as cartas
amorosas de um dos maiores poetas do século passado, o português Fernando
Pessoa.
Se todo homem é um universo de percepções, sonhos e
experiências, a alma multiforme de Pessoa cindiu-se numa miríade de galáxias,
desveladas pela esquizofrenia literária da heteronímia. O poeta são poetas, e é
esse parnaso pessoal, composto por filósofos panteístas, médicos
aristocráticos, engenheiros futuristas, escrivães misantropos, que constitui um
dos maiores desafios ao entendimento desse pequeno funcionário português, desse
cultor da astrologia e do ocultismo, do homem metódico dado ao vício do álcool,
da carne que se fez verbo, coerente com a troca de sinal da mensagem do
evangelho que representou seu projeto de existência.
Nas cartas a seguir, endereçadas por Fernando Pessoa a
sua amada Ophélia, é impossível não reconhecer os ecos de outra célebre
epistolografia literária, aquela trocada por Franz Kafka e sua noiva, Felice
Bauer; ambos, Kafka e Pessoa, foram burocratas medíocres, que consumiram a vida
no processo monomaníaco de encontrar o sumo da existência, transmutada na obra
(talvez não fosse de todo incorreto afirmar que, para Pessoa e Kafka,
parodiando os versos do primeiro, escrever é preciso, viver não é preciso),
ambos vivendo paixões fadadas ao fracasso, repletas de extremado apego e de obsessões
neuróticas.
Como apontará o romancista italiano Antonio Tabucchi,
estudioso dos labirintos de Pessoa, na notável introdução ao volume, devemos
enfrentar as desventuras epistolares do poeta português com olho armado, e uma
saudável dose de perspicaz ceticismo. Quem era tantos (ou um outro, na
formulação famosa de outro poeta, Rimbaud, que no exercício de sua
clarividência percebeu uma das fraturas mais fundamentais da modernidade) não
pode mesmo se expressar com a naturalidade inocente de um colegial apaixonado,
ou ainda: é justamente a expressão, pouco apaixonada, por vezes quase infantil,
do amor de Pessoa, que nos deve fazer desconfiar que, sob a camada de gelo fino
da paixão sem erotismo, reverbera um oceano de complexidade gigantesca, quase insondável.
“Fausto em gabardina”, dirá Tabucchi, ao traduzir a
odisseia moral do poeta e de sua Ophelia, e é mesmo isso. Assombrado pela
obsessão dos relógios, dos documentos, da confirmação de seu amor, Pessoa (Qual
deles? Todos? Quem?) parece, angustiosamente, ao narrar seus pequenos acidentes
domésticos, seus contratempos diários, suas indisposições físicas, perseguir um
sentido de normalização, uma via de tranquilização através do Outro, a plena
realização de si por intermédio do ordálio amoroso. E não é de surpreender que,
tendo tornado a si mesmo personagem, e metamorfoseado sua vida em construção
literária, a própria compreensão do amor, seja, para Pessoa, a de uma página
artística. Se a vida desimporta – no sentido mais pedestre que se possa
atribuir a uma palavra tão eivada de sentido quanto “vida” – e se no lance de
dados só a obra seja o próprio sentido das coisas, o amor só interessa, ele
mesmo, como objeto poético. Daí que o amor de Pessoa seja tão casto, tão
inocente, tão platonizante, tão despido de sexualidade e de carne: aqui, todo
gozo se localiza no campo da palavra e da ideia: “O amor é que é essencial/ O
sexo é só um acidente”, segundo a ascética formulação expressa nos versos do
ortônimo.
Ao menos, resta-me o apaziguador consolo, querido leitor,
de tê-lo alertado acerca dos riscos da empreitada que ora se inaugura. A
leitura da correspondência alheia não é atividade inocente. Muito menos se o
signatário das cartas intitular-se Fernando Pessoa.
Título: Cartas à Ophelia
Autor: Fernando Pessoa
Gênero: Cartas
Páginas: 160
Formato: 14 x 21 cm
ISBN: 978-85-250-5539-2
Preço: R$ 34,90
Editora: Globo Livros
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