Literatura
como cura
Artigo publicado Folha de S.Paulo
Hoje quero falar de dois sintomas que marcam nossa
época. O primeiro sintoma é a falação ruidosa de nosso mundo; o segundo é a
ideia de que o mundo sofre porque não nos amamos e que tudo se resolveria se
nos abraçássemos e parássemos de sermos gananciosos.
Fala-se demais hoje. Todos têm opinião. Até jovens de
20 anos são chamados a dar opinião sobre o mundo e a sociedade, quando mal
sabem arrumar o quarto. E quando se elegem crianças de 25 anos como arautos da
sociedade (adulto que faz isso, o faz, normalmente, para ter discípulos fiéis e
fanáticos, ou porque é bobo mesmo), o resultado é que acaba se pensando que o
mundo começou, como diz um amigo meu muito esquisito, em "Woodstock".
Quando se pensa isso, acaba-se imaginando que o
problema do mundo é mesmo aprendermos que "all you need is love"...
Infelizmente, a humanidade é mais complicada do que pensa nossa vã inteligência
woodstockiana. Contra essa visão infantil da realidade (este é o segundo
sintoma do qual falei acima), proponho a leitura da obra do grande crítico
norte-americano Edmund Wilson. Vou a ele já; antes, quero voltar ao problema do
ruído mais especificamente (o primeiro sintoma do qual falei acima).
Somos um grande mundo ridículo e falastrão. Decorrente
dessa falação, um ruído infernal toma conta do dia a dia. O silêncio, às vezes,
é um dos maiores indicativos de maturidade, não só de uma pessoa, mas de uma
civilização.
Estou falando isso por conta de um breve ensaio que
caiu na minha mão esses dias, parte integrante do volume "Best American
Essays 2013", editado por Cheryl Strayed.
O ensaio ao qual me refiro foi escrito pela prêmio
Nobel Alice Munro e chama-se "Night". Nele, a autora conta a operação
que fez quando criança para tirar o apêndice e uma "coisa do tamanho de um
ovo de peru". Munro compara o comportamento atual diante de casos como o
dela e o comportamento de seus pais na época. A conclusão é que hoje se falaria
como o diabo do risco que ela corria na época. Mas, ao contrário, pouco se falou
do assunto, "respeitando o medo" sem falação. Conta Munro que, nessa
época, ela dormia num beliche com sua irmã mais nova (moravam numa espécie de
granja), e que numa noite olhou para a irmã e pensou em sufocá-la.
A partir daí, não conseguia mais dormir, pensando no
ímpeto que tivera de matar sua irmã. Numa das manhãs seguintes a suas noites de
insônia, encontrou com seu pai, todo vestido chique, saindo de casa de manhã
muito cedo. Contou para ele o que pensara e o horror que sentira.
Seu pai simplesmente lhe disse que esquecesse aquilo e
que essas coisas passam. Depois, adulta, lembra como o modo simples de falar do
pai a acalmou profundamente. A pequena Alice nunca mais teve insônia.
Na sequência, a prêmio Nobel comenta que nunca
perguntara ao pai para onde ele ia tão cedo e tão elegante. Perguntou-se se ele
ia ao banco renegociar a dívida da família ou ver a mulher que amava, mas com
quem não podia ficar porque amava sua família... Silêncio. Nem uma linha de
rancor. Hoje, escreveriam uma tese sobre como seu pai poderia ter sido um homem
desatento ou, quem sabe, infiel. Ao lembrar do seu pai no momento do
reconhecimento em que recebera o prêmio, Munro pensa em como ele teria ficado
orgulhoso de sua pequena filha insone.
Nessas horas, tenho saudade do passado e lamento como
nos transformamos em adolescentes barulhentos que se levam demasiadamente a
sério.
O segundo autor que quero comentar é Edmund Wilson, um
dos últimos críticos literários, segundo Paulo Francis, a enfrentar a
literatura sem se esconder atrás de grandes teorias abstratas (que se querem
"concretas").
No volume editado por Francis pela Companhia das Letras
em 1991, "Onze Ensaio - Literatura, Política, História", esgotado,
aparece sua "visão de mundo": a história é um longo processo através
do qual as civilizações se devoram, criando e destruindo, em círculos, indo
para lugar nenhum. Concordo.
Pura coragem intelectual, que tanto faz falta hoje,
nesta época de líderes adolescentes que creem em Woodstock como modelo de
sociedade.
Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e
ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de
Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento
contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre
eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na
versão impressa de "Ilustrada".
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