Seu nome era Maria
Engana-se elipticamente
quem acredita ser este um texto sobre Maria, a Santa Mãe. Se era esta a
intenção do leitor, pare imediatamente de ler. Conto a história de outra.
Ontem
entrei no ônibus do bairro e sentei na primeira cadeira, perto do motorista. Em
alguns segundos, uma voz desafinada começou uma cantarola alta e bastante
desconjuntada. Olhei para o lado e avistei uma mulher, que estava vestida como
criança e sentara-se exatamente atrás do motorista. Com o tempo passando, fui
me habituando às cantigas, que eram religiosas e falavam de uma mãe, um manto,
coisas assim. Comecei a me divertir através dos ouvidos, já não me parecia tão
desafinada. Lembrava mais o clamor de alguém cuja voz sai da garganta pra fora.
Ah, sim, me lembro perfeitamente que ela também pedia chuva.
Algum
tempo depois, não fui capaz de contar, já que o deleite tomou conta de meus
pensamentos, ela levantou e disse: “Tchau motorista!”. Até aí tudo bem, mas o
que me fez vibrar e ficar do avesso foi a resposta dele: “Tchau Maria! Bom
final de semana!”. Ele sabia o nome dela. E era Maria! Outras pessoas também
disseram tchau a ela, adicionados de abraço para sua mãe, pai, etc. Fiquei
aturdida com a cena. Uma mulher, com corpo de mulher, roupas e canto de criança
fora chamada pelo nome ao invés de ser absolutamente ignorada, como tenho me
acostumado a ver, principalmente em cidades grandes. Aliás, como tenho notado
no não-olhar das pessoas umas às outras.
Quantas vezes eu mesma já
abaixei os olhos diante de algo que não me agrada ver? Depois que Maria desceu,
um silêncio incômodo tomou conta do ônibus, na verdade não sei se foi do ônibus
ou de mim. Senti um desejo quase incontrolável de cantar, como Maria. Queria
sair do silêncio em que caminho às vezes. Tentei pensar nas músicas que ela
cantava, mas nunca aprendi a rezar, não sei das músicas de Maria. Como percebi
algo de infantil em suas cantigas, daquelas que aprendemos em criança, com equívocos
nas palavras, que levamos errando vida afora, comecei a lembrar das músicas da
minha infância. Imediatamente comecei a cantar a plenos pulmões: “O SAPO NÃO
LAVA O PÉ, NÃO LAVA PORQUE NÃO QUÉ. ELE MORA NANALAGOA, NÃO LAVA O PÉ PORQUE
NÃO QUÉ. MAS QUE CHULÉ!!”.
Assim cantei a música do
sapo em todas as vogais: “A SAPA NA LAVA PÁ...NE LEVE PEQUE NE QUE...ILI MIRI
LI NI LIGUII, NO LOVO O PO PORCO NO CÔ...MUS CU CHULU!!!”. Aos poucos percebi
que as pessoas do ônibus começaram a cantar junto comigo. Gastei quase todo o
repertório infantil. Perdi a noção da hora e dei três voltas no bairro. Quando
finalmente resolvi olhar o relógio, dei fé de que tinha que descer. Disse:
Tchau motorista! E ele respondeu: “Tchau Isloany, até amanhã!”.
Isloany Machado - Psicóloga clínica (CRP 14/03820-0) Psicanalista, membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano - Fórum do Campo Lacaniano de MS. Especialista em Direitos Humanos pela UFGD e em Avessos Humanos pelo Ágora Instituto Lacaniano. Mestre em Psicologia pela UFMS. Despensadora da ciência e costuradora de palavras por opção.
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