" A cultura é a nossa única forma de imposição no
mundo"
Por Nuno Galopim
Fotografia de Pedro Granadeiro/Global
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Qual é o segredo da longevidade deste músico que
assinala daqui a poucos meses vinte anos de Viagens, o álbum de estreia que fez
dele uma referência musical e uma voz crítica? Porque continuam as suas
composições a ser sucessos na rádio, percorrendo várias gerações? Nesta grande
entrevista, Pedro Abrunhosa fala da pressão do sucesso sobre a vida privada, de
cidadania e de política. Em Contramão, o novo disco que grava com os Comité
Caviar, parte das canções para refletir sobre o que somos e o país em que
vivemos. Tudo sem tirar os óculos.
É um contador de histórias que usa a canção como
veículo?
_Sim. Cada vez mais me preocupo com a canção. Sendo que
a canção é aquela forma simples e secular da qual eu sou um dos herdeiros.
Procuro a simplicidade dentro da canção e a canção tem por função contar
histórias, ser crónica, ser arauto, espalhar a palavra, não no sentido
proselitista mas naquele poético e sociológico... Essa mistura entre palavra e
som, contadora de histórias urbanas e não só, nas quais me projeto em dois
sentidos. Em primeiro lugar, projetando a minha vivência direta, porque
qualquer obra é autobiográfica. Uso a minha voz para falar da minha existência
e da existência de todos, porque amor é amor e dor é dor. Somos iguais,
partilhamos um espaço comum. Por outro lado, uso a minha para dar voz aos
outros, os anónimos, aqueles que estão na rua, aqueles que trazem histórias por
dentro. São essas histórias que me interessam desenterrar: os personagens das
cidades, que habitam o nosso plano, e que à noite regressam para casa. O Edgar
Morin dizia "o verdadeiro ato sociológico é olhar para uma fachada e
adivinhar quem está por dentro". As pessoas são fachadas com seres humanos
por dentro.
Como em tempos fez com a história de Gisberta [o
transexual assassinado no Porto em 2006], desta vez canta um retrato do
lisboeta Senhor do Adeus. São as tais personagens das cidades, mas estas duas
com figuras reais e muito concretas. O que o levou a elas?
_São personagens do nosso universo cheias de poesia e
tragédia, essa é a razão comum. A tragédia sempre teve mais valências poéticas
do que o sucesso; não adianta cantar o sucesso, ele canta-se a si próprio.
Portanto, falar daqueles que se perderam no caminho, alguns que se fizeram
perder outros que perderam. Nos dois casos há uma situação comum que é a
solidão. A Gisberta morre num prédio no Porto, assassinada, sozinha. E o Senhor
do Adeus, ainda que na cidade de Lisboa, sendo um pouco a alma e o pulsar da
cidade - eu chamo-lhe Príncipe Feliz do Saldanha - era uma espécie de via
aberta nos dois sentidos para quem entrava e saía de Lisboa. Era impossível não
passar por ele. Toda a gente sabe quem é o Senhor do Adeus e toda a gente lhe
disse adeus, uma vez ou outra, e acendeu os faróis. O Senhor do Adeus tinha
aquela particularidade de estar ali àquela hora, às 00h00, num ato claramente
solitário, mas que projetava uma luz. Não direi luz obscura sobre a cidade. Por
um lado, dizia adeus com um sorriso, mas por outro com tristeza. Nunca o
conheci pessoalmente, mas achei dos personagens mais poéticos que encontrei no
decurso das minhas muitas viagens... E encontrei alguns. Encontrei um em Nova
Iorque sobre o qual, um dia, escreverei. Mas aquele em particular, porque
passava por ele todos os dias e acenava. De alguma forma devo ter contribuído
para que ele se sentisse menos só. A solidão é um dos flagelos deste fim de ciclo.
As viagens que fez antes do álbum a que chamou Viagens
formaram o homem que faz esse disco?
_Elas existiram, por isso é que o disco se chamava
'Viagens'. Houve esse percurso antes do disco, o de fazer mesmo estradas, de
estar lá nos sítios, de correr o mundo (eu corri o mundo de mochila), depois e
até durante o meu curso. Há uma complementaridade entre a minha carreira
académica e a minha carreira na estrada. Essa complementaridade, que acho que
não me deixou tornar num intelectual, puxou-me sempre para o chão, para a
terra. Eu era um estudante de música clássica/contemporânea, e estava muito
encaminhado para ser um músico clássico, mas ainda bem que o estar na terra me
permitiu olhar para o lado e ver Robert Cray e Lou Reed, James Brown, os ciganos...
Depois, a fusão desses dois universos é que dá. Mais a literatura, que é muito
importante na minha vida desde cedo... Eu fazia viagens por terra, não havia
low costs, portanto, chegava aos sítios mais remotos do planeta sempre por
terra, guiando o carro, indo de cavalo, de autocarro... Em camiões, viajando
com animais, etc. Ia conhecendo a realidade e isso trouxe-me uma valência muito
grande. Essa textura, levou-me muito próximo das pessoas. É uma coisa que eu
espero nunca perder, a proximidade do real. Fez com que chegasse a Portugal e
não tivesse nenhum complexo de ser português ou da língua portuguesa, nenhum
complexo de inferioridade que é uma coisa que os portugueses, infelizmente,
têm, uma certa subserviência, uma coisa atávica, já do século XVI em relação ao
estrangeiro, cujo apogeu, na negativa, foi o ultimato inglês.
Sente que temos, coletivamente, um complexo até mesmo
com a nossa cultura?
_Nós temos culturalmente uma alma gigantesca que nunca
utilizamos no exterior como afirmação identitária para que sejamos finalmente
respeitados. Porque só se respeita um povo que tem identidade cultural. Povos
que não a têm e que não se auto-respeitam na sua própria identidade cultural,
jamais conquistaram o respeito dos outros. E a identidade alemã é isso. É
Wagner, Strauss, Schumann, Thomas Mann... e vamos por aí fora. E a identidade
italiana é Visconti, Bertolucci, Dante. A alma portuguesa é enorme, através da
cultura. É o que nós somos. Aquilo que poderia ser Lopes Graça, poderia ser
Jorge Peixinho, Braga Santos... Poderia ser muita coisa, Lobo Antunes, Eça,
Camões... É a cultura que faz o país. Mas nós continuamos a vender-nos como
técnicos subalternos da Europa. Consideramo-nos os desgraçados da Europa.
Portanto, venha o que vier lá de fora, nós aplaudimos.
É isso que o faz querer cantar em português?
_Claro. Canto na língua em que amo e em que sonho. Digo
"amo-te". Não "I Love You". Mas não me interessa o que os
outros fazem, e fazem-no bem. A mim interessa-me esta coisa do enaltecimento,
de percebermos que o que fazemos entre portas é muito, mas muito melhor, do que
a cultura da música do abdominal que vem das Rihannas, embora a Rihanna seja
muito interessante, mas por outras coisas. Ou Madonna. Interessa-me muito pouco
isso. Isso interessa às grandes companhias para cumprir cotas. Como se fossem
produtos farmacêuticos, é preciso vender "x" de aspirinas, lá venham
discos de um rapper qualquer, à frente de um Porsche amarelo. É assim que
funciona. Nós, a nossa música, a nossa literatura, poesia, cinema, que está a
atravessar uma crise profunda... O nosso teatro está mano a mano com o que de
melhor há e sempre com o que de melhor houve. O facto de continuarmos com esta
subserviente genuflexão perante o estrangeiro é o que faz com que não estejamos
a celebrar continuamente no Metropolitan ou na Royal Ophera House. Porque é que
não se faz a integral do Fernando Lopes Graça ou o Opus Ensemble no
Metropolitan? A nossa riqueza, não tanto em quantidade que o país é menor, mas
em qualidade, não é inferior.
Falta uma política cultural interna e de exportação?
_Não é uma política cultural, é a política como
cultura. E a cultura como política. É perceber como perceberam os países
escandinavos que um país desinformado, sem instrução, com baixo grau de acesso
aos bens culturais, vai ser um país mais pobre, a curto, médio e longo prazo. A
cultura não serve outra coisa se não para enriquecer o país. Um povo mais culto
é um povo mais rico. A cultura produz. As indústrias culturais, produzem 2 a 3
por cento do PIB. A cultura é a nossa única forma de imposição no mundo, como
foi com Cabo Verde: pode ter umas belas praias, mas se não fosse a música, as
praias não estavam no mapa.
No novo disco, entre os vários momentos poéticos que
aborda, há uma canção [A.M.O.R.] que foca a questão da intolerância religiosa.
Que não é só do nosso tempo, mas também da nossa história enquanto povo. Recua
inclusivamente aos tempos da Inquisição. A intolerância religiosa é um dos
males do mundo?
_Não acho que seja a intolerância religiosa, mas sim o
fanatismo, a cegueira, estupidez e ignorância. A fé é algo que respeito muito.
As pessoas projetam-se numa identidade superior e inatingível. Essa fé que faz
com que se construam pirâmides ou o Mosteiro da Batalha. É a fé que põe o
mosteiro de pé e não a batalha de Aljubarrota. Aquela abóbada, claustro e nave,
naquele tempo... Isso prova a existência de Deus, mesmo que eu não acredite que
ele exista. Ele existe porque as pessoas são tantas que fazem uma obra que
prova a sua existência. Eu sei que é um pouco filosófico... Por outro lado,
esta mesma capacidade telúrica, de construir porque se acredita, o que faz com
que Ele exista de uma forma filosófica, abrangente é a mesma que leva ao
extremo: a linguagem religiosa quando é lida a palavra de uma forma
ignorante... O poeta Al-Mu'tamid dizia "cuidado com o homem que lê de um
livro só". Aquele que só lê do Corão ou da Bíblia só conhecerá aquela
realidade. Portanto, toda aquela realidade será afunilada... Como aquele que só
vê a Casa dos Segredos. É uma realidade que fica completamente toldada e cega.
É isso que prova o fanatismo, não a religião. Por isso é que digo, nesta
canção: "As coisas que unem as religiões são muito mais do que as separam.
O meu Deus não usa balas nem explode na multidão". Eu não creio que seja
isso que o Islão faça. Mas também não é o Deus que se esconde na Santa
Inquisição, não é esse o Deus que Cristo vem pregar à Terra. Portanto, o
aproveitamento externo que se faz a isso, que é político e humano, faz com que
os mesmos homens que constroem obras divinas também destruam o divino em si. É
essa a discussão: a destruição do divino através da má utilização de Deus, da
utilização de Deus.
E quem só ler um livro não conhece o outro...
_Obviamente. Por isso, pelo menos na minha estante, o
Corão e a Bíblia estão lado a lado com outros livros, com o 'Memorial Do
Convento' e o 'Evangelho Segundo Jesus Cristo'. No caso de Saramago, um homem a
quem o seu próprio país, em vida, não lhe é concedida a chave da cidade de
Mafra... Estamos a falar de perseguição política e religiosa, de cegueira. No
fundo, estamos a falar de ignorância. Esta canção não é contra a religião, mas
sim contra a ignorância. E a questão da homofobia também. Deus não é uma mulher?
Todos os Deuses têm destino de mãe - porque é que tem de ser sempre um Deus
masculino?
Há uma outra canção, Todos Lá Para Trás, que é mais um
retrato do Portugal que somos. Ali canta sobre a «Geração Currículo, Dez
estágios no Japão, Cinco cursos, doutorados, Recibos verdes e pão»...
_É a chamada «Polaroid».
É-lhe importante continuar a fazer estes retratos?
_Sim. Porque, para já, é uma linguagem imediata e
pronta e irónica. Não é preciso pensar muito para se fazer uma letra divertida
sobre o que se passa no país. Apesar da tragédia na qual este país se foi
transformando, pela má gestão, pela incompetência, tráfico de influências e,
sobretudo, pela mediocridade... Este país, enfim, foi gerido por uma massa
medíocre de constantes profissionais da gestão política, não digo todos, claro.
É uma generalidade, o sistema democrático existe e funciona, é para isso que
existe, e aquele sistema político-partidário também. Mas os resultados estão à
vista de todos. Nós temos de ser pragmáticos: a gestão do país desde a
omnipresença salazarista, tem sido uma péssima gestão. E o país, se já estava
atrasado 50 anos no 25 de Abril, agora, depois de termos tido de repente um
estrebucho de democracia, a república foi interrompida. Neste momento somos um
protetorado... A segunda república foi interrompida. A primeira acaba em 26, há
uma ditadura, não existe república. E é restaurada a república a 25 de abril de
1974. Portanto, a segunda república está agora interrompida. Aos meus olhos
este homem que está a servir de Presidente nunca foi eficaz politicamente. Mas
poderia ter interrompido o ciclo das coisas, se fosse suficientemente homem de
cultura. Temos um Governo a dizer que o país não está em crise, que está a sair
dela; por outro lado, temos as filas de desempregados no centro de emprego, que
começam à uma da manhã do dia anterior. São 48 horas de filas de desemprego. E
o 'Todos lá para trás' é isso. "Um homem a trabalhar, mais de 20 a
dirigir". Basicamente é assim. Já vi isto várias vezes. Este homem a
trabalhar sustenta os outros 20 com os seus impostos e IRC. Diz a lei que assim
se faz, até que o homem se fartou e disse 'Todos lá para trás'. Acho que chegou
a altura de dizer a esses gestores, àqueles que erraram e são muitos, que
voltam a repetir a mentira que já chega - "todos lá para trás!".
O espaço das candidaturas vindas do espaço da cidadania
pode ser uma resposta?
_O problema é quando os independentes se tornam
profissionais também... Acho que é uma das respostas. A diabolização dos
partidos não. O respeito pelos partidos é um dos axiomas da democracia. Os
partidos representam as pessoas. O problema é quem é que representa os
partidos, essa é a grande questão. Eu continuo a rever-me nos partidos. E
revejo-me nos independentes também, desde que não sejam falsos independentes.
Há aqueles que são independentes porque estão à frente de uma câmara e depois
zangam-se com o partido por questões pessoais.
Sente a falta, no espaço político português, para mais
um partido?
_Não. O que existe é uma taxa de abstenção gigantesca e
esta taxa não pode ser aglutinada num bolo uniforme. Porque ela está
distribuída entre a esquerda e a direita. Os de direita que não votam, que não
se identificam, porque acham que deviam ser ainda mais à direita; os de
esquerda, que acham que devia de ser mais à esquerda; e os do centro, que não
se reveem em nenhum. E depois os descontentes e os desinteressados. Não se pode
dizer que existe um partido com 53 por cento de pessoas. As pessoas não votam
por muitas razões e talvez a principal seja esta: a do descrédito do sistema
partidário. Portanto, compete aos partidos repor este crédito. Como aconteceu
em muitos países que atravessaram a mesma crise, como o caso da Alemanha, da
Islândia, da Escandinávia, onde a abstenção chegou a ter grandes proporções e
agora tem menos. A Dinamarca, a Noruega... Que é para não cairmos na
italianização da democracia, em que, no fundo, não interessa votar. Esta
importação da cultura pseudodemocrática italiana não serve para Portugal. Não
acho que seja preciso mais um partido. É preciso uma clarificação, uma
transparência do sistema político-partidário e a credibilização da democracia
através do partidos, de todos eles. Do PSD ao CDS, do PS ao Bloco de Esquerda
ao PCP, há pessoas de imenso valor e de grande honestidade. E já deram provas
disso. E é para esses que temos de olhar. É nesses que temos de nos
referenciar.
Às vezes a presença de figuras polarizadoras (como
sucedeu com Obama e os seus opositores nos EUA em 2008) pode estimular a
vontade de votar...
_A liderança é uma grande lacuna em Portugal. À exceção
de Paulo Portas que é uma pessoa carismática - e não tem que ver com a minha
postura ideológica, mas tem um discurso muito claro, embora ínvio - não existe
um líder carismático. O Jerónimo de Sousa, talvez. Pelas razões opostas, porque
é muito terra-a-terra, genuíno. Não quero parecer um analista, mas no centro é
tudo muito assexuado. E esta incapacidade que os políticos têm de arriscar... E
arriscar não é pôr um chapéu estranho na cabeça e dançar no meio da praça em
eleições; arriscar é dizer coisas que são verdadeiramente desafiantes,
construtivas e que perspetivem o futuro dos cidadãos, mesmo que possa parecer
que é uma quebra das regras, sendo que o mundo só avança se forem quebradas as
regras. A tradição, como dizia o meu querido professor Álvaro Salazar, é mais
do que uma série de erros acumulados; é preciso quebrar tradições, porque assim
continuaremos nesta rotina marasmática. Portanto, claro que com o
desaparecimento de figuras carismáticas como o Álvaro Cunhal ou o Mário Soares,
que desaparece de cena, não é só o carisma que está em causa. É a capacidade de
gestão ideológica em função do propósito de conquista de poder. E não é o poder
pelo poder; é o poder para servir e o poder com uma carga ideológica. Não é o
poder substantivo, é o poder adjetivo. Isso não existe. Eu gosto muito do
António Costa, acho-o um homem com uma postura, para já, fortemente sábia e
ponderada, ideológica. É um homem preparado. Acredito que a esquerda poderá
ganhar muito com o António Costa.
Fala nisso como um potencial candidato à presidência?
_Eu espero que seja um potencial candidato a
Primeiro-Ministro, embora os compromissos em Lisboa devam ser cumpridos. Porque
serve mais como primeiro ministro. António Costa é um homem que representa
isso: carismático e com um discurso muito claro. E empático.
Acha que o momento em que dá um concerto em 1994, na
véspera do buzinão na Ponte 25 de Abril, amplificou a sua voz política?
Tornou-o mais ouvido?
_Foi uma mera coincidência. Amplificar é a palavra
certa. O então primeiro ministro ordenou aos soldados, a polícia de choque da
altura, e sem haver os protestos que há agora por causa dos ataques aos
direitos essenciais dos cidadãos, uma brutal carga policial na Manuel Pereira
Roldão (na Marinha Grande), creio que no mês de agosto de 1993, da qual
resultaram muitos feridos, alguns em estado grave. Passado um ano, uma nova
carga policial na ponte 25 de Abril. Curiosamente era ministro da Administração
Interna, das polícias, um senhor chamado Dias Loureiro. A história escreve-se
também por estas linhas. As pessoas podem desaparecer, mas o que fizeram fica
cá. E o ministro da Administração Interna dá ordem à polícia, na ponte, para
disparar. E disparam e ferem. Há um indivíduo que fica tetraplégico. Hoje, isso
seria impensável, o Governo cairia de imediato. Estou muito satisfeito com o
facto da CGPT tomar a dianteira numa série de iniciativas de manifestações
populares, e não só (movimentos como Que Se Lixe a Troica). De terem percebido
que as manifestações não podem passar o dealbar da violência. Por uma razão
também - é que os polícias nunca tiveram ao lado do povo como agora. Os homens
que defendem a escadaria do palácio, de São Bento, são também vítimas de 40 a
60 por cento de cortes, nas suas pensões e reformas. Estão ali a cumprir um
papel. A casa de nós todos, a tribuna. Felizmente que estes protestos têm sido
pacíficos, para todos nós. Porque chega-se mais depressa a propósitos políticos
assim. E a CGTP tem um grande papel na institucionalização do processo. Mas na
altura a raiva perante as injustiças que se cometiam, e que eram muitas,
nomeadamente aquele aumento brutal, por motivos privados que se vieram a
descobrir depois, da Lusoponte, gerou um protesto genuíno das pessoas. Eu por
acaso estava a tocar... Os meus concertos, mesmo muito antes do meu disco
Viagens ser editado, tinham uma intervenção cívica. Por acaso estavam lá as
televisões. Eu não me aproveitei da presença delas, mas as televisões aproveitaram-se
da minha presença para tentar fazer coisas que eu não permiti que se fizessem.
Um dia falaremos sobre isso. Poderia ter sido muito pior o que aconteceu na
ponte 25 de Abril, tivesse eu cedido à pressão de alguns meios de comunicação
que gostam de sangue e de escândalo.
Nesse mesmo 1994 o que é que os Bandemónio fizeram de
diferente face aos seus projetos, que lhe permitiram atingir o sucesso?
_Na realidade, os Bandemónio são uma identidade que vai
mudando. Eram meus alunos. Qual era a mais valia? A Máquina do Som [com quem
antes tocava] eram meus músicos, estava uma vez com eles por semana; com os
meus alunos eu estava todos os dias. Eu ensaiava de facto com a Máquina de Som,
mas depois, quando chegava à sala de aula, ensaiava com os Bandemónio. Primeiro
soava péssimo. Passado seis meses, melhor; um ano depois soava melhor do que a
Máquina do Som por uma questão de tempo e de método. Foi isso que os Bandemónio
fizeram. Quando o disco é gravado, ainda não é gravado pelos Bandemónio. Quando
vou para a estrada, evidentemente chamo os Bandemónio. Mas eles eram um
grupo... Foi tudo muito giro, mas era um grupo que claramente podia ser
fracionado ou dissolvido. A dada altura: "acabou os Bandemónio, o nome já
me irrita". E crio os Comité Caviar que são músicos com outra escola, com
outra estopa. E que servem os propósitos desta sonoridade nova que estou a
explorar. Vou conseguir melhor ainda isto, chegar onde quero. Os discos nunca
estão prontos, é preciso arrancá-los e entregá-los à editora. Nunca estão prontos,
é como os livros. Mas no momento em que começamos a corrigir o livro outra
vez... Mais vale começar a escrever outro. Let it go.
O álbum Viagens (1994) atinge vendas espantosas. Tempo
(1996) ainda vai mais longe. Mas Silêncio, de repente, cai. É um disco mal
compreendido?
Não. Houve uma altura, logo a seguir ao Viagens, em que
tive de me retirar. Era demasiada coisa em cima de mim, muita pressão. Ninguém
passa incólume pelo sucesso e fiquei arrasado. Nunca quis ser famoso, gosto da
descrição, tenho uma vida muito discreta. Gosto que me deixem em paz. Usufrui
de muitas coisas e continuo a usufruir, mas há coisas que me aborrecem muito.
Fala do lado intrusivo da fama?
_Sim. Gosto da minha reclusão. O palco é o palco, dura
três horas. Depois eu preciso de espaço interior, de ler... O Silêncio é um
murro na mesa, um disco em que me chateio com tudo e com toda a gente. E no
qual digo um pouco «ponham-se longe». Sabia que era um disco na vertigem. Foi o
disco que quis fazer, mas nota-se que é agressivo, zangado. Com muitos erros,
erros de produção minha, completamente assumidos, mas tem coisas muito boas
também. Eu era um aprendiz de produtor. Mas é um disco em que marco: «deixem-me
em paz». Marca uma coisa muito importante da minha carreira, a capacidade de
romper e de arriscar, apesar do sucesso todo. De pôr o pé no risco vermelho. O
Silêncio continua a ter as músicas mais pedidas - Como uma ilha, O Beijo.
Cumpriu um bocado o Velvet Underground da minha carreira. Ficou assim um disco
de culto, com canções emblemáticas.
Tem uma relação com o cinema nasce com a canção Se Eu
Fosse Um Dia O Teu Olhar para o filme Adão e Eva, de Joaquim Leitão, mas que se
aprofunda quando Manoel de Oliveira o chama para ser ator em A Carta ou com o
pequeno filme que ele mesmo faz depois para 'Momento'...
_Sou um cinéfilo. Acho que as minhas músicas têm uma
componente cinematográfica que podiam ser muito bem aproveitadas se houvesse
uma indústria cinematográfica em Portugal. Não existe, lamento. E o
'publishing' não funciona como deveria ser para colocar, como o Rodrigo Leão
colocou, uma música no grande mercado nacional, no mercado de Hollywood, facto
de que de resto muito me orgulhei, porque prova que é possível fazê-lo.
Gostaria imenso de conseguir o que ele conseguiu. Sim, isso acontece com o
Joaquim Leitão, com o Manoel de Oliveira, mas sabe a muito pouco. A minha
experiência com o Manoel foi, se calhar, mais profunda, porque fui ator e fiz
parte da banda sonora original do filme. Com o Joaquim também, fiz a banda
sonora toda do filme. Depois, o Manoel faz o meu 'clip', que privilégio. É o
único que ele faz e está na filmografia dele. Sou um fervoroso admirador do
Manoel, embora andemos sempre à turra e à massa. O Manoel é muito pragmático,
acutilante, completamente dionisíaco. Não é nada do que se pensa. E então temos
grandes confrontos, onde aprendo imenso. Oxalá se consiga agora com mais um
disco tentar o mercado de cinema onde ele existe. Seja em Espanha, França...
Vamos tentar através do publishing fazer isso. Mas como ator sou um paspalho.
Acho que arruinei o filme do Manoel de Oliveira.
Este seu novo disco, onde colabora uma figura enorme do
flamenco, pode levá-lo a Espanha?
_Não. O flamenco é como o fado, específico e purista.
Tive o arrojo de convidar o Duquende e ele teve o de aceitar o convite. Não sei
o que vai acontecer, mas a primeira coisa que me perguntaram foi se o disco ia
ser editado em Espanha. Não envergonha nenhum flameguista e a canção só ganhou
com ele, ficou sublime. Sempre compare a soul ao flamenco. E consegui
finalmente fazê-lo. O que vai acontecer, não sei. Ele dá uma respeitabilidade
fatal, mas o que dirá Espanha de um português que escreve uma música que pode
ser um flamenco? Não sei como funciona.
Este é um disco em que aprofunda uma cultura rock, que
vem do último disco. Além disso explora ainda mais uma maior presença da voz do
piano. É o instrumento com o qual compõe...
_Sim. É o rock canção, rock clássico. O rock faz parte
da grande tradição da música negra. Vem daí. Do gospel, do jazz, do blues...
Tudo isso faz parte da história do rock. O piano é, de facto, o meu
instrumento. O piano lidera, abre caminho por ali fora. Não são muitos os
grupos de rock que têm um piano a liderar. Geralmente o roqueiro toca guitarra
e é por isso que este é um rock, de alguma forma, sui generis. Quer dizer, Nick
Cave fá-lo. É bastante mais escuro, mas fá-lo. A mim interessa-me essa ligação,
do piano com as guitarras. São dois instrumentos harmónicos e eu sempre aprendi
no jazz, e não só, que dois instrumentos harmónicos não podem falar ao mesmo
tempo com a mesma intensidade, porque vão conflituar. Cada um dos
instrumentistas tem a sua concepção harmónica. Alguém tem que tomar a
liderança. Neste caso, muitas vezes é o piano que o faz. Curiosamente é um
instrumento muito utilizado no gospel, nas igrejas e no rock'n'roll.
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