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Lama [Cinthia Kriemler]

Lama

Seguiu a pé em direção ao rio, o barro da chuva da véspera lambuzando os pés expostos pelas sandálias de tiras. Os homens haviam tentando impedi-la, mas ela era mais ágil do que eles. Não tinha quem a fizesse desistir daquela vontade. Vontade de mãe. Ninguém ia afastá-la da cria. Que mãe não aguenta distância de filho; que mãe não dorme, não sossega enquanto não enxerga e confere se está tudo lá: dois braços, dois pés, duas orelhas, dois olhos lindos, cor de jabuticaba. Tudo.


A chuva estava começando outra vez e vinha de aguaceiro. Nada pouco, que o céu adora um desperdício. Ela precisava correr se quisesse alcançar a margem do Rio Verde antes que o temporal a obrigasse a se abrigar. Não. Não podia parar de jeito nenhum. Parar só o tempo. No antes, no mais cedo. Tropeçou em um tronco podre escondido na lama, escorregou e feriu a mão em um pedaço de madeira esfiapada. O sangue vivo brotando da pele, dando alguma cor à natureza cinza. Esfregou a mão machucada na saia, tentando limpar o ferimento, mas continuou andando. Merda! Não ia se atrasar por causa de dor.
A cortina de água parecia um muro de cimento. Mas não era. Só ilusão. O chão irregular, o rio bravo, o céu desfeito, tudo continuava lá, atrás daquela parede falsa. Seguiu pisando com pressa, sem escolher onde afundar os pés, agora já totalmente imundos de barro. Força. Precisava de força para seguir em frente. Nada de tomar cuidado, que cuidado  desvia da intenção.

Avistou os homens à beira d'água, enfileirados como os bonecos de jornal que o pai recortava para ela brincar de sombras na parede do quarto pobre, iluminado apenas pela luz de velas. Fazia tanto tempo. Não era mais menina. Nem pobre. E os homens não estavam brincando. Ajeitavam alguma coisa em uma lona amarela e, por uns instantes sem contexto, ela pensou que aquele amarelo ficava lindo na chuva, como um sol molhado. Os homens tentavam levantar o fardo. E a cada vez que tentavam, a água fazia com que a lona escorregasse de suas mãos.

A falta de visibilidade causada pelo temporal não deixou que a vissem se aproximando. Até que foi tarde demais. E o grito que ninguém escutou foi por causa dos trovões. Empurrando os homens com chutes e socos, livrou-se dos braços que queriam segurá-la e abriu a lona amarela jogada no barro mole da beira do rio. Nem sentiu as unhas sangrando. Nem sentiu os braços se estirando pelo esforço. Mãe não aguenta distância de filho; não dorme, não sossega enquanto não enxerga e confere se está tudo lá: dois braços, dois pés, duas orelhas, dois olhos feios, abertos, opacos, azulados pela morte.

Abraçada ao corpo frio e mutilado, ela odiou o rio, a correnteza e o redemoinho traiçoeiro que puxava as vidas para o fundo, tornando-as carcaças disformes. A mão sangrava novamente. E as unhas. E a alma. Um dos homens prometeu que levaria o corpo para casa. Sim, ela o queria em casa. No quarto inundado de luz elétrica, onde o computador esperava com mensagens. Protegido da chuva, do rio. Lá, ele era seu menino. E não aquele rapaz cheio de si, cheio de vontade própria. Vontade de pular no Rio Verde, de enfrentar o redemoinho da morte e ser herói para os amigos, para as mocinhas cheias de hormônios.

Maldito! Maldito! Desobediente, malcriado! Viu? Viu no que deu você não me escutar? Viu agora que mandar na própria vida é decidir sozinho a própria morte? Quem estava com você no sorvedouro? Que mão agarrou a sua mão, puxou o seu braço? Quem mergulhou para lutar por você? Maldita criança estúpida! Por que é que você tinha que querer ser homem?

Desviou os olhos do caixão que descia silencioso, sendo engolido lentamente pelo chão de lama do campo santo. Ao redor, os rostos jovens e assustados a emocionaram por alguns segundos. Mas logo teve raiva deles. Seriam os próximos. Presos às ferragens retorcidas de um carro, vencidos pela overdose inesperada, abatidos por tiros em uma briga sem sentido. Achando graça. Orgulhosos por terem crescido. Sem saber o preço da morte.

Voltou a pensar no fundo do rio, na força das águas entrando nos pulmões do filho, tirando-lhe o ar. Deixou que a levassem embora, que a deitassem na cama imensa e que lhe dessem o remédio mágico que congelaria a sua dor por algumas horas. Quando o aperto no peito voltasse, tomaria mais um, antes que a garganta gritasse.

Algum tempo depois, acordou, sentindo-se abraçada. Olhando em volta, viu os bonequinhos de papel ao redor do próprio corpo. Na cadeira de balanço, o pai, roupa velha, sorriso farto. Correu até ele, deitando a cabeça naquele colo que balançava o passado. Sentiu o cheiro da pobreza. Um cheiro feliz. Depois viu o filho, sentado no chão, mãozinhas miúdas montando alguma coisa com as peças de um jogo colorido de madeira. “Um castelo pra você, mamãe”.

E então aquele cheiro enjoativo de lama. Lama de rio, de fundo de rio. Lama de morte. No quarto escuro, realidade. Dormiu novamente. Só queria acordar para ser sonho.

Cinthia Kriemler - Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.

8 comentários

Unknown disse...

Ah, Moça, que coisa triste e linda! E verdadeira: mãe é assinzinha, mesmo...

Cinthia Kriemler disse...

Obrigada, Gina!

Unknown disse...

Tocante! Nos preocupamos, vamos atrás de nossos filhos e tentamos resgata-los ate nos nossos sonhos!

Unknown disse...

Tocante! Nos preocupamos, vamos atrás de nossos filhos e tentamos resgata-los ate nos nossos sonhos!

Cinthia Kriemler disse...

Dani, é isso mesmo. Mãe é filho. Tira isso e a gente é vazio. Obrigada! Bjks

cecilia disse...

Mais um show de texto, Cinthia. Triste, triste, triste. Impressiona o jeito como você assimila a dor da mãe diante da perda de um filho. Você é minha ídola e é em você que quero me espelhar para um dia escrever assim. Emocionada aqui,

Emerson Braga disse...

Cínthia;
Seu texto expõe de modo magistral o peso da maternidade que recai sobre os ombros de cada mulher que optou (ou não) por ser mãe. Todas elas pensam que podem proteger seus filhos das armadilhas do do mundo, e ficam com raiva de tudo e de todos quando seus "poderes miraculosos" falham, e elas se veem tão somente humanas, talvez diante do corpo sem vida de um filho. Impossível não sentir a lama sob os pés, atrasando o passo, como em um pesadelo do qual queremos acordar, mas não podemos. Lindo, Cínthia. Triste e lindo!

Cinthia Kriemler disse...

Emerson, que comentário sensível e lindo! Obrigada! Beijo imenso.