Lama [Cinthia Kriemler]
Avistou os homens à beira d'água, enfileirados como os bonecos de jornal que o pai recortava para ela brincar de sombras na parede do quarto pobre, iluminado apenas pela luz de velas. Fazia tanto tempo. Não era mais menina. Nem pobre. E os homens não estavam brincando. Ajeitavam alguma coisa em uma lona amarela e, por uns instantes sem contexto, ela pensou que aquele amarelo ficava lindo na chuva, como um sol molhado. Os homens tentavam levantar o fardo. E a cada vez que tentavam, a água fazia com que a lona escorregasse de suas mãos.
A falta de visibilidade causada pelo temporal não deixou que a vissem se aproximando. Até que foi tarde demais. E o grito que ninguém escutou foi por causa dos trovões. Empurrando os homens com chutes e socos, livrou-se dos braços que queriam segurá-la e abriu a lona amarela jogada no barro mole da beira do rio. Nem sentiu as unhas sangrando. Nem sentiu os braços se estirando pelo esforço. Mãe não aguenta distância de filho; não dorme, não sossega enquanto não enxerga e confere se está tudo lá: dois braços, dois pés, duas orelhas, dois olhos feios, abertos, opacos, azulados pela morte.
Maldito! Maldito! Desobediente, malcriado! Viu? Viu no que deu você não me escutar? Viu agora que mandar na própria vida é decidir sozinho a própria morte? Quem estava com você no sorvedouro? Que mão agarrou a sua mão, puxou o seu braço? Quem mergulhou para lutar por você? Maldita criança estúpida! Por que é que você tinha que querer ser homem?
Desviou os olhos do caixão que descia silencioso, sendo engolido lentamente pelo chão de lama do campo santo. Ao redor, os rostos jovens e assustados a emocionaram por alguns segundos. Mas logo teve raiva deles. Seriam os próximos. Presos às ferragens retorcidas de um carro, vencidos pela overdose inesperada, abatidos por tiros em uma briga sem sentido. Achando graça. Orgulhosos por terem crescido. Sem saber o preço da morte.
Voltou a pensar no fundo do rio, na força das águas entrando nos pulmões do filho, tirando-lhe o ar. Deixou que a levassem embora, que a deitassem na cama imensa e que lhe dessem o remédio mágico que congelaria a sua dor por algumas horas. Quando o aperto no peito voltasse, tomaria mais um, antes que a garganta gritasse.
Algum tempo depois, acordou, sentindo-se abraçada. Olhando em volta, viu os bonequinhos de papel ao redor do próprio corpo. Na cadeira de balanço, o pai, roupa velha, sorriso farto. Correu até ele, deitando a cabeça naquele colo que balançava o passado. Sentiu o cheiro da pobreza. Um cheiro feliz. Depois viu o filho, sentado no chão, mãozinhas miúdas montando alguma coisa com as peças de um jogo colorido de madeira. “Um castelo pra você, mamãe”.
E então aquele cheiro enjoativo de lama. Lama de rio, de fundo de rio. Lama de morte. No quarto escuro, realidade. Dormiu novamente. Só queria acordar para ser sonho.
8 comentários
Ah, Moça, que coisa triste e linda! E verdadeira: mãe é assinzinha, mesmo...
Obrigada, Gina!
Tocante! Nos preocupamos, vamos atrás de nossos filhos e tentamos resgata-los ate nos nossos sonhos!
Tocante! Nos preocupamos, vamos atrás de nossos filhos e tentamos resgata-los ate nos nossos sonhos!
Dani, é isso mesmo. Mãe é filho. Tira isso e a gente é vazio. Obrigada! Bjks
Mais um show de texto, Cinthia. Triste, triste, triste. Impressiona o jeito como você assimila a dor da mãe diante da perda de um filho. Você é minha ídola e é em você que quero me espelhar para um dia escrever assim. Emocionada aqui,
Cínthia;
Seu texto expõe de modo magistral o peso da maternidade que recai sobre os ombros de cada mulher que optou (ou não) por ser mãe. Todas elas pensam que podem proteger seus filhos das armadilhas do do mundo, e ficam com raiva de tudo e de todos quando seus "poderes miraculosos" falham, e elas se veem tão somente humanas, talvez diante do corpo sem vida de um filho. Impossível não sentir a lama sob os pés, atrasando o passo, como em um pesadelo do qual queremos acordar, mas não podemos. Lindo, Cínthia. Triste e lindo!
Emerson, que comentário sensível e lindo! Obrigada! Beijo imenso.
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