Literatura negra: além da recepção convencional
Podemos distinguir, esquematicamente, dois tipos de
artistas. De um lado, aquele espécime cuja arte se mantém muito rente à vida e
ao real; e, de outro, o sujeito que entende a arte como uma transfiguração da
circunstância, isto é, sua obra nos faz supor uma indisposição com relação ao
real. O senso comum, entretanto, parece disposto a dar mais crédito ao artista
do primeiro tipo. Ao contrário do representante do segundo tipo, este artista
não pode ser um fingidor. O fruidor admira o poeta que suja suas ferramentas
inspecionando os transes do vivido. Assim, o objeto de arte se transforma num
sucedâneo sentimental e público de uma singular experiência existencial.
Precisei desse preâmbulo pela seguinte razão: há uma
percepção de que a verdadeira arte se confunde com a vida e isto, bem ou mal,
serve de critério para avaliarmos uma infinidade de manifestações criativas, porém
com uma exceção: a literatura negra. Muitos não aceitam que o qualificativo
seja aplicado à noção de literatura, baseados na crença de que a arte não tem
cor. Ora, ao não dar crédito à literatura negra, o objetor, que deposita
confiança na unidade entre vida e arte, cai em contradição, pois sua posição,
que implica a recusa de um eu enunciador que se assume negro no próprio texto,
o fará negar, em fim de contas, a concepção de que a arte mais genuína é a que
confina com a vida. Um escritor que, além de não dissimular sua condição de
negro, resolve tratar em sua literatura de questões como o preconceito racial
ou as veladas tensões étnicas da sociedade brasileira não seria um espécime do
primeiro tipo de artista? Sua arte não nos faz supor um mergulho radical num
aspecto concreto da existência? O impasse tem a ver com a recepção. E, às
vezes, a recepção, mais do que desinformada, se revela maledicente.
A recente publicação Literatura e afrodescendência no
Brasil: antologia crítica (Ed. UFMG, 2011), resultado da colaboração de 61
pesquisadores de 21 universidades brasileiras e estrangeiras, reúne em seus
quatro volumes um conjunto de textos literários e análises voltados à vertente
negra. Tal vertente se constitui numa forma de canto paralelo ao percurso canônico
das obras estruturantes da literatura brasileira enquanto sistema. Pouco depois
do lançamento deste livro, Ferreira Gullar, representando parte da recepção
maledicente, escreve resenha onde afirma não ter cabimento falar de literatura
negra, porque os africanos que vieram para cá não tinham literatura e que isso
não fazia parte de sua cultura. A polêmica foi grande e frutuosa. E Gullar foi
o maior beneficiado, já que, depois da bobagem preconceituosa que escreveu,
recebeu informações de todos os lados sobre as tradições orais e a riqueza dos
discursos formados a partir de signos não-verbais presentes tanto na arte
antiga, quanto nas diversas culturas do ocidente e do oriente. Ferreira Gullar
não reconhece a importância da cultura oral para o africano. A capacidade de
produzir um discurso literário não supõe a tecnologia da escrita.
Contra tal pano de fundo é que julgo importante discutir os
limites e as virtudes da literatura negra. Com relação ao tema, minha atitude
tem mais de metalinguagem do que de afirmação concludente. Uns pensam a
literatura negra desde a perspectiva de lances identitários através dos quais a
prática literária se efetiva como testemunho de verdade racial. Do ponto de
vista da criação e da reificação de uma literatura negra, podemos afirmar que
isso se limita com um esforço coletivo e extraliterário que tem em vista,
antes, redefinir um pertencimento etnopolítico, do que propor uma forma
específica de linguagem. É como se a vida tomasse a dianteira, restando à arte
um papel menor. O tópico da literatura negra não deve ser lacrado às pressas.
Exceto, talvez, do ponto de vista de alguma vaidade acadêmica ou de certa
limitada retórica militante, é algo que, a rigor, não tem de ser resolvido. As
tensões etnossociais e políticas às quais estes textos em certa medida fazem
alusão, estas sim, podem e devem ser resolvidas. Mas um poema não admite
solução.
Portanto, antes de
qualquer coisa, literatura negra só pode ser mesmo literatura, isto é, uma
forma de discurso que tem sua autonomia conectada ao campo estético. Essa
produção não pode fazer uma aposta apenas no que é acidental. A este propósito
evoco uma passagem de minha convivência com o poeta Oliveira Silveira
(1941-2009), intelectual negro e um dos proponentes do 20 de Novembro, Dia
Nacional da Consciência Negra. Uma vez, Oliveira me disse que não tinha trauma
nenhum em se deixar reconhecer como um “poeta, negro”, desde que ninguém
desprezasse essa vírgula imiscuída entre os dois termos, forçando uma breve,
porém necessária disjunção. Para Oliveira Silveira, o qualificativo que vem
após a vírgula: negro, gaúcho, concreto, não é, de modo nenhum, irrelevante,
mas, apenas, secundário. Ou melhor, trata-se de uma linha por meio da qual
podemos arriscar uma leitura precária, provável.
A literatura negra vem se consolidando com rapidez. Há
registros de escritores negros com obras publicadas já no século 18. Em
Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica o interessado vai
encontrar um mapeamento surpreendente de poetas e prosadores negros que
permaneciam à margem. Por outro lado, sempre que me pego refletindo mais uma
vez sobre essa literatura – na perspectiva dos dilemas contemporâneos –, não
deixo de mencionar alguns escritores. Não porque talvez representem, com suas criações,
o sangue novo na corrente sanguínea e, portanto, reuniriam, digamos assim, as
melhores condições para renovar a vertente negra; não. O que importa para mim é
que quando me vejo diante dos textos destes autores, percebo outras questões
criativas. Suas intervenções mais do que consagrar, mantêm o espaço em
construção, aberto a investigações e revisões de linguagem de toda ordem.
Assim, fazendo um corte drástico no agora-agora desta
produção – pois reservo, à parte, uma série de autores que, no mínimo,
enriquecem o debate –, indico ao leitor os nomes de Arnaldo Xavier (1948-2004)
e Ricardo Aleixo, poetas interessados na experimentação e na intersecção entre
as linguagens; Edimilson de Almeida Pereira, cuja poesia é uma vigorosa
recriação da episteme afro-brasileira; e, finalmente, Cidinha da Silva,
prosadora refinada que situa seu texto na nervura do presente, atenta aos ardis
das representações e das afecções a que são submetidos os negros contra um pano
de fundo multimídia. Quem está disposto a ampliar o apetite pela literatura
para além do convencionalmente tolerável precisa ler estes escritores negros.
Ronald Augusto
nasceu em 1961 no estado do Rio Grande do Sul. O escritor atua em
inúmeras áreas: é músico, letrista, ensaísta e possui ainda um trabalho
significativo no âmbito da literatura. Como poeta alcançou
expressividade no cenário nacional e até mesmo mundial, de tal forma que
suas produções foram publicados em revistas literárias, bem como em
antologias, dentre elas destacamos: A razão da Chama, organizada por
Oswaldo de Camargo (1986), a revista americana Callaloo: African
Brasilian Literature: a special issue EUA (1995), a revista alemã
Dichtungsring Zeitschrift für Literatur, e outras.
twitter.com/ronaldpoesiapau
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