Richard Sennett define, em “O declínio do
homem público: a tirania da intimidade”, a cidade como “um assentamento humano
em que estranhos têm a chance de se encontrar”. Zygmunt Bauman, ao fazer
referência à definição de Sennett, diz que os estranhos podem se encontrar como
estranhos e manter-se desse modo, pois o encontro casual não exige
desdobramento e nem filiação ao nosso arquivo de memória, ou seja, não precisa
comportar em si nem o passado, nem o futuro. Os encontros citadinos modernos
assemelham-se ou lembram “desencontros”. Em “Medianeras – Buenos Aires na era
do Amor Virtual” (2011), de Gustavo Taretto, as personagens transitam em uma
cidade que favorece tais desencontros. O crescimento urbano desordenado,
disforme, irregular da capital argentina reflete as instabilidades econômicas e
emocional de um mundo cada vez mais tecnológico, que encena a época da
conectividade total e da era da solidão resignada, na qual exercemos a nossa
dependência apaixonada pela comunicação virtual.
Nesse ambiente, Martín (Javier Drolas), um
web designer, vive a fase do isolamento, pois foi abandonado pela namorada, e
Mariana (a bela atriz espanhola Pilar López de Ayala), uma arquiteta que não
exerce a profissão e ganha a vida como vitrinista de loja, passa a morar
sozinha, numa espécie de reclusão voluntária, após dar fim a um relacionamento
de 4 anos, quando percebe não ser mais capaz de reconhecer a pessoa com a qual
dividia os planos de uma vida em conjunto. A alusão à arquitetura permeia toda
a película, que usa as construções edificadas na urbanidade portenha como
metáfora para os anseios, patologias e distanciamentos contemporâneos. No prólogo,
Martín descreve a Buenos Aires que vê e, a certa altura, lança uma pertinente
interrogação: “O que esperar de uma cidade que dá as costas ao seu rio?”. A
cidade não proporciona o alívio ou desopilação das vicissitudes modernas: o
enclausuramento, a angústia, e o medo dos contatos. O mar, linha de fuga
negada, deixa de ser o escapismo que o olhar busca para dirimir o peso da
existência.
Medianera é o ponto considerado inútil de
um prédio, a sua parte lateral, que expõe as fraturas do viver enclausurado em
minúsculos apartamentos, mas que serve também de anúncios para o capital, produtos
e mais produtos que usam o elemento vazio da “grandiosidade” urbana para lançar
as pessoas ainda mais no consumo que as tornam distantes. Medianeira também é a
parte que permanece indomável (já que a publicidade sofre as intempéries do
tempo), repleta de ranhuras e refúgios, que deveriam ser melhor observados por
nós, para, quem sabe, revelar-nos a nossa própria capacidade de encantarmo-nos
com aquilo que consideramos dispensável e insignificante, com aquilo que nos
preenche sem percebemos.
Na letargia do dia a dia, os sucedâneos
para uma vida com algum sentido podem estar em encontros fugazes, de envolvimentos
superficiais (como em encontros marcados pelo chat) ou realmente fugidios (com um personagem noturno que no dia
seguinte desaparece), em planos para começar a natação ou conversas em sites de
relacionamento. Martín e Mariana moram próximos, mas não estão em meios sociais
que possibilitem o contato. Aliás, não estão em círculo de amizade algum. São
almas solitárias que sentem como a estética da cidade os diluem sob o ritmo de
seu crescimento acelerado. A cidade os aproxima e os distancia. Há uma multidão
que concentra os desideratos do sucesso e as “impropriedades” do fracasso,
porém que parece indiscernível na padronização de corpos afoitos que caminham
em direção de seu “lugar ao sol”. A fobia e a depressão são sintomas desse
tempo em que é preciso evitar perder a qualquer custo. E assim, por mais que um
mero acesso a uma rede social ou de relacionamento nos proporcione conversar
com alguém, a incomunicabilidade é soberana, expondo a fragilidade dos laços
humanos e as aventuras/desventuras dos envolvimentos descompromissados.
Porém, mesmo com o afastamento sendo a
síndrome essencial do contemporâneo, Martín e Mariana arriscam passos que os arranque
do marasmo cotidiano. E no livro “Onde está Wally?”, que Marina tem como
preferido, pode estar a chave para a pequena mudança definitiva. Marina, ao
procurar por alguém que não sabe quem é, movimenta menos a ideia do destino do
que a possibilidade de encontrar o singular no uniforme caminhar de sombras à
luz do dia.
“Medianeras” é um filme romântico que
dispensa os arroubos da paixão (e todo o idílio formado pelos encontros e
desencontros clichês que consagram os felizes para sempre. Excetuando a cena
contida nos créditos finais) e aponta para personagens que sofrem das
disfunções sociais típicas da atualidade, para elaborar as desarticulações
manifestas nas metrópoles que reduzem o ser humano a projeto de vencedores e
esmaga os desavisados.
Wuldson Marcelo é mestre
em Estudos de Cultura Contemporânea e graduado em Filosofia (ambos pela UFMT).
É revisor de textos, autor do livro de contos “Subterfúgios Urbanos” (Editora
Multifoco, 2013) e um dos organizadores da coletânea “Beatniks, malditos e
marginais em Cuiabá: literatura na Cidade Verde” (Editora Multifoco, 2013).
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