Onde ficam os gritos
Guardava
segredos. Aprendera a ser silêncio desde pequena. A ser apenas gritos internos.
Quantos anos tinha? Quatro, cinco? Memórias incertas. A babá se perfumando com
os frascos caros da penteadeira da mãe. A babá ajeitando os cabelos no espelho
oval do corredor. A babá encostando a língua na língua do moço que entregava as
compras. Aquele passear de mãos pelo corpo inteiro; por cima e por dentro do
uniforme. Os apertões, os tapas. Gemidos de dor quase não gemidos.
Entrecortados, semitonados. E o rosto contorcido, exausto. Coitadinha.
Não
gostava do moço que fazia a babá gemer. E estranhava aquela dor que não pedia
socorro. Quis respostas. Perguntou. Arrependeu-se. Você quer que a babá vá
embora? Quer? Você quer ver a babá chorar? Não queria. Calou-se. Descobriu que
o nome desse não contar era segredo. E que calar era um jeito de não perder as
pessoas. Gostou de ser segredos. Cresceu silêncios.
Além
dos gritos, aprendeu a escoar para dentro os risos de deboche que recebia na
escola. A limpar pacientemente a terra jogada nos longos cabelos pelas meninas
no recreio. A encapar os livros duas vezes, para protegê-los melhor das poças
d'água onde eram jogados uma, duas vezes por semana. Silêncios.
Quando
ouviu as meninas falando sobre o príncipe encantado que chegaria no meio da
noite para levá-las na garupa de um cavalo branco, pensou em contar-lhes que
não havia cavalo nenhum. Que o príncipe suado viria do quarto ao lado e se
deitaria sobre elas e passearia as mãos sobre seu corpo e lhes cobriria a boca
com a mão pesada, repetindo em seus ouvidos: minha princesinha, minha
princesinha. Contar-lhes sobre a invasão negociada a promessas de brinquedos e
viagens. Sobre a verdade impedida por manipulações traiçoeiras. Se mamãe souber
vai ficar triste com você. Você quer que a mamãe vá embora? Quer fazer a mamãe
chorar? Mas não disse nada. Ela guardava segredos.
Aprendeu
a limpar o sangue escuro que saía do sexo pequeno sem pronunciar a agonia das
feridas. As dores na barriga, os calafrios, a tontura. Tudo fluindo para
dentro. Sem voz. Sem alarde. Até que os seios fartos e as ancas redondas lhe
disseram que era tempo de basta.
Criou
coragem de mulher. Contou à mãe sobre as noites de princesa. Arrependeu-se.
Mentirosa. Você quer que seu pai vá embora? Que ele me deixe sozinha? Quer?
Você sempre teve ciúme do seu pai comigo. Cala essa boca e some daqui.
Descobriu
que falar era um jeito de afastar as pessoas. As piores pessoas. E que inconfidência
tinha sabor de alívio. Transbordou. Expeliu segredos, silêncios. Livrou cada
dor que pedia socorro. Por fim, abriu a porta. E se jogou para fora. Para fora,
onde deviam estar os gritos.
Cinthia Kriemler
- Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de
Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e
Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na
oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de
contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo
de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas
“Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma
de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da
Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há
mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
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3 comentários
Sufoco! É o que senti lendo esse texto. É impressionante como você consegue sacudir e desacomodar a gente, Cinthia.. Parabéns!
Parabéns pelo texto. Triste realidade.
Cinthia Kriemler, seus contos sempre me causam uma espécie de arrebatamento que dá prazer. Um nó na garganta, pelo peso do conteúdo, misturado ao encantamento pela beleza poética da narrativa. Ler suas peças é um privilégio!
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