A Mulher na Literatura Brasileira (5ª Publicação) [Rubens Jardim]
RENATA PALLOTINI ( 1931) Poeta, advogada, filósofa e dramaturga. Nasceu em São Paulo, escreveu e produziu trabalhos para teatro e televisão, entre os quais Vila Sésamo e Malu Mulher. Publicou mais de 20 livros de poesia, sem contar os de prosa, teatro e ensaios. Recebeu diversos prêmios por seus trabalhos, inclusive oJabuti. Desde 1988 faz parte do corpo docente da Escuela Internacional de Cine y Television de San Antonio de los Baños, em Cuba.
BURITI CRISTALINO
(Para Lamarca e os outros)
Ele andou por três dia
na caatinga.
No quarto dia ajoelhou
de fome.
No quinto adormeceu ao pé da baraúna.
No sexto foi encontrado
e metralhado pelos guardas.
E no sétimo
descansou.
POÉTICA (II)
Descer até o fundo
e quando o sentimento
esteja o mais maduro
provocá-lo e feri-lo
para que a voz aflore
mas sem meias-medidas
sem cautela e sem pena:
assim o Poema.
O GRITO
Se ao menos esta dor servisse
se ela batesse nas paredes
abrisse portas
falasse
se ela cantasse e despenteasse os cabelos
se ao menos esta dor se visse
se ela saltasse fora da garganta como um grito
caísse da janela fizesse barulho
morresse
se a dor fosse um pedaço de pão duro
que a gente pudesse engolir com força
depois cuspir a saliva fora
sujar a rua os carros o espaço o outro
esse outro escuro que passa indiferente
e que não sofre tem o direito de não sofrer
se a dor fosse só a carne do dedo
que se esfrega na parede de pedra
para doer doer doer visível
doer penalizante
doer com lágrimas
se ao menos esta dor sangrasse.
BAGDAD
(20 de março, 2003)
Onde nasceu o mundo
morre o mundo.
O oriente amanhece
no meu quarto.
Soldados nunca falam.
Matam e escrevem cartas.
Correspondentes de guerra
se arriscam por uma imagem.
As mulheres e as crianças
essas
morrem caladas.
(sem título)
A vida vindo a ser o que devia:
absolutamente agora
sem nenhum
outro dia.
CORAÇÃO COURAÇADO
Tempestades em oceanos
ou em copos d'água
e não peço a Deus balsas
barcaças nem praias.
Só um coração couraçado.
Desses que no lombo
das ondas vão sem tombos
o convés em festa.
Iluminado.
DESASTRES DE AMOR
Mulher bule de louça
deixa-se pegar pela alça
e verte suor e sangue
em quantia exata.
Dei com o nariz
na porta do teu coração.
Foi sangria desatada
e a porta do pronto-socorro
também encontrei fechada.
Eu disse a meu coração:
Sossega pois tudo passa.
O nada não é perdição
mas estado de graça.
Desde que o mundo é mundo
a sina:
o amor, centelha
que faz o incêndio
e a cinza.
A CASA NO BREU
Faz tanto tempo
que deixei aquela casa.
Confesso: não sei mais
da estrada nem da chave.
É como se ficasse em cidade
sem nome, em outro planeta
ou nem existisse mais.
No entanto não sei como
de vez em quando algo
me arrebata e me arrasta
ao seu regaço de breu.
Tudo o que eu ouço é o vôo cego
dos morcegos no vão das telhas
e uma torneira pingando
sem parar.
Será o choro de minha mãe na sala
ou serei eu mesma em pranto?
DEMOLIÇÃO
Desmorono o império doméstico
Trono onde se acasalam as coisas
Sacralizadas em hieráticos nichos.
DA POESIA
Esculpo a página a lápis
e um cheiro de bosque
então me aparece.
Que a poesia é feita de romãs
daquilo que é eterno
e de tudo que apodrece.
Profundamente
Estão todos sentados esta noite.
Estão todos sentados.
A velha mesa respira
mas nadas se aquieta.
Estão todos sentados
mortos e sentados.
E este amor não basta
para carpir os beijos os nomes
os retratos.
Amor de perdição
Era um fluir de formas
essência grave e leve
era a ordenação do caos
a harmonia breve.
Era o poema
encostado no muro
qual flor vadia
que entre ramas se esquecia.
Era o poeta
lambendo a página
em que o poema
encantado se escrevia.
Não pude ser
Não pude ser
o teu amor perfeito
antes esta ferida.
Por isso para ti
não serei a pele
– poro a poro teu alumbramento –
serei apenas a cicatriz.
Perfeita
(sem título)
Solidão de árvore
esperando o fruto.
Solidão de Lázaro
esperando o Cristo.
Solidão de alvo
esperando a seta.
Ave, poeta.
ERRO
Edifiquei minha
casa sobre a
areia
Todo dia recomeço
OBSERVANDO
sim
há
as horas de trégua
Quando se afiam
as facas
COMPOSIÇÃO I
Criar impactos
com
palavras
Pérolas
deslizando
na correnteza
Como barcos
me transportam
aonde nenhuma viagem chega
e eu colho frutos raros
Nesta ilha – entre
pedras – ressuscito
Com o fôlego
das
palavras
TRANSFORMAÇÃO
Anjo
dá guarda
Eu estou atravessando
Também me empresta
de tuas asas
o voo
Que eu chegue a nenhum lugar
PAISAGEM
O sol se
põe
Girassóis olham o chão
Gavetas
o poema
caído
da ventania
- as gavetas escrevem
o poema sem voz
nascido
da dor em demasia
UM VISITANTE
Quem escreve
é
um visitante
Chega nas horas da noite
e toma o lugar do
sono
Chega à mesa do almoço
come a minha fome
Escreve
o que eu nem supunha
Assina o meu nome
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