A solidão de narciso [Alex Castro]
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Há muito tempo, eu dava aulas em uma universidade nos Estados Unidos, onde as pessoas são muito mais obcecadas por notas que no Brasil. Então, quando estudantes começaram a pirar antes da prova final, eu dizia algo mais ou menos assim:
“Pensem comigo. Somos todos primatas sem alma, vivendo vidas sem sentido, presos na superfície de uma bola de pedra girando em torno de si mesma e se deslocando em círculos pelo vazio do espaço, destinados a morrer em breve, junto com todos nossos entes queridos, assim como nossos países, nossas culturas e nossos idiomas, que vão desaparecer também, aquecidos por um sol que logo se auto-destruirá, levando com ele tudo o que já conhecemos.
Então, sinceramente, no grande esquema das coisas, que importância pode ter essa prova?”
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Um trechinho do livro “Sempre Zen” (1989), de Joko Beck:
“O que de fato queremos é uma vida natural. Mas nossas vidas são tão artificiais que essa busca, no começo, é bastante difícil.
Apesar de estarmos começando um novo caminho, trazemos as mesmas atitudes que tínhamos anteriormente: não achamos mais que a resposta está em um novo carro de luxo, mas sim em alcançar a iluminação. Continuamos na mesma corrida, apenas trocamos o troféu. Agora temos um novo “se ao menos”: “se ao menos eu conseguisse entender um pouco melhor o universo, então eu seria feliz”; “se ao menos eu conseguisse atingir uma pequena experiência de iluminação, então eu seria feliz”, etc, etc.
Muitas de nós acreditamos que se tivéssemos um carro maior, uma casa mais bonita, férias mais longas, um patrão mais compreensivo, ou um parceiro mais interessante, nossas vidas seriam muito melhores. Não há quem não pense assim.
Passamos a vida pensando que existe o “eu” e que existe essa outra coisa separada, “o tudo que não sou eu”, que nos causa alternadamente dor ou prazer. Assim, evitamos tudo que nos fere ou desagrada ou causa dor; e buscamos ou toleramos ou aceitamos tudo que nos agrada ou nos envaidece ou nos causa prazer, fugindo de uns e perseguindo outros. Sem exceção, todos fazemos isso.
Ficamos apartados da vida, olhando para ela de fora para dentro, analisando, fazendo cálculos como “e o que eu ganho com isso? será que vai me trazer prazer ou conforto? será que devo fugir?” Sob nossas fachadas agradáveis e amistosas, existe muita ansiedade.
Se nosso barco cheio de esperanças, ilusões e ambições (de chegar a algum lugar, de tornar-se espiritual, de ser perfeito, de alcançar a iluminação) vira de cabeça pra baixo, o que é esse barco vazio? O que sobra? Quem somos nós?”
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Um trechinho do livro “Not for Happiness” (2012), de Dzongsar Jamyang Khyentse:
“Esses dias, o objetivo de muitos ensinamentos é fazer as pessoas “se sentirem bem”, validando seus egos e suas emoções. Mas é um erro considerar que a prática do caminho vai nos acalmar ou nos ajudar a viver uma vida tranquila. Se você só está preocupado em se sentir bem, melhor fazer uma massagem relaxante ao som de uma música new age.
O caminho não é terapia. pelo contrário, ele foi elaborado sob medida para expor nossas falhas e virar nossa vida de cabeça pra baixo.
Aliás, se você pratica o caminho mas sua vida ainda não virou de cabeça pra baixo, então sua prática não está funcionando.”
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Quando um paciente chegava com questões existenciais profundas, o Analista de Bagé (personagem criado por Luis Fernando Veríssimo) lhe dava logo um joelhaço “bem ali onde tudo começa e tudo se resolve”.
Se o bagual começasse a reclamar da “finitude humana”, do “vazio cósmico”, do “absurdo da existência”, levava outro joelhaço.
Finalmente, o vivente compreendia que o infinito pode ser uma sensação horrível, mas que o joelhaço, aquela dor enorme, ali nas bolas, ali naquele momento presente, mais presente impossível, era muito pior.
Nesse momento, estava curado.
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Um trechinho do texto “A segunda história de Eco e Narciso“ (2012), da pessoa que escreve sob o pseudônimo de O Último Psiquiatra:
Narciso não estava tão apaixonado por si mesmo que não conseguia amar mais ninguém: é o oposto. Ele nunca amou ninguém e então se apaixonou por si mesmo. Porque ele nunca amou ninguém, ele se apaixonou por si mesmo. Essa foi sua punição.
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A solidão é um egoísmo: ninguém reclama “estar sozinho”, sente “vazio existencial”, ou quaisquer outros desses caprichos bem-alimentados, quando está ouvindo, acolhendo, se doando para outra pessoa.
Narciso não estava só: ele tinha seu reflexo.
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Há doze anos, escrevo sobre aquilo que chamo de “As Prisões“:
São as bolas de ferro mentais e emocionais que arrastamos pela vida. São as ideias pré-concebidas, as tradições mal-explicadas, os costumes sem-sentido.
Nos últimos meses, tenho viajado o Brasil falando sobre As Prisões. Uma conversa experimental, sempre no fim-de-semana, um espaço livre para todos compartilharem suas histórias, para todas as certezas serem chacoalhadas. As próximas são em Curitiba, Belo Horizonte, Vitória e Belém, em maio.
(Para mais detalhes, calendário completo, vídeos, depoimentos de quem foi, roteiro completo da palestra, tudo isso, veja aqui.)
Fonte:
PapodeHomem
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