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Um Torreão de Memórias [Gil Façanha]

UM TORREÃO¹ DE MEMÓRIAS (conto)

Era amor... E assim sendo, impossível de definição, pois ao defini-lo ele deixaria de o ser, por si só. Mas era amor. Na mais sublime doação da palavra, dentro das regras ditadas pelos costumes em que fora criada.

Havia mais que entrega, mais que a obrigação da lei... Havia a dedicação subserviente, ainda que totalmente aceitável por ela e pela maioria das mulheres do seu tempo. Seu corpo era maculado sob os lenções do tabu e da timidez, mas sua dignidade, ao cair do sol, era publicamente desrespeitada por não ter em sua conduta, a postura dissoluta das chamadas “damas da noite”.

Os filhos viriam cedo (imposição do casamento), e a partir do primeiro rebento, não haveria mais como pensar nela mesma (Como se algum dia houvesse sido ofertado a ela, tal direito). Agora seria mãe e esposa devota... Embora não houvesse na terra, santo que merecesse sua devoção. A inocência notável podia ver pureza até nos olhos da maldade. O esposo, único homem a beijar seus lábios, era para ela a promessa da felicidade eleita. Ela gozava da graça de ter escolhido aquele a quem dedicaria sua vida e seu amor. Mas ele, que um dia fora perfeito aos olhos dela, e por tal razão lhe roubara o coração juvenil, pôde ensina-la sem pena, que a ingenuidade não passa pela vida sem pagar o exato preço.

Nos momentos mais difíceis, ela se pegava lembrando de uma vida pobre, de uma infância não vivida, dos dias sem comida à mesa, e da humilde casa, onde em noites de chuva, ela fechava os olhos para sentir o carinho gélido da água que escorria do teto tão frágil, que somente a candura de uma criança não suspeitaria dos riscos aos quais estavam expostos. Só assim, somente diante de lembranças tão duras, conseguia seguir adiante, tentando ver que de algum modo, os dias atuais eram melhores.

Parte de sua infância e adolescência fora vivida em colégio interno, onde o contato com a família era ínfimo, pois seus outros oito irmãos fora daquelas paredes precisavam ainda, de mais atenção que ela. Precisavam de cuidados que ela ali já teria, rodeada por freiras que a preparava para se tornar uma mulher exemplar. Até hoje, ela não sabe dizer se aquela solidão assistida foi mesmo melhor que estar ao lado daqueles que lhes fazia tanta falta. Mas, como uma boa menina, deu o melhor de si, sem reclamar em voz alta... Sem que suas lágrimas de saudade fossem testemunhadas.

Ela também gostava de recordar do primeiro encontro, aquele exato instante em que seu coração disparou e ali, se dera conta de que havia encontrado seu futuro marido. Belos dias vividos desde então. Uma curta fase de felicidade que será eternamente lembrada, a fim de apagar o longo período em que lhe roubaram a fé nos sonhos... Doces sonhos que foram desfeitos pela realidade imposta.

Vinte anos e seis filhos depois, ainda muito jovem, posto que se casou ainda bem moça, ela ficou viúva. Ele partiu vítima da embriaguez. Vício que atormentou a família por tanto tempo, tirando a paz e o sossego do que poderia ter sido um lar feliz. As inúmeras amantes que ela chegou a conhecer, inclusive uma que foi colocada dentro de sua própria casa como amiga leal, teria se tornado um fardo relevado pela personalidade complacente, que aprendeu com a mãe, que homens têm necessidades diferentes, e mesmo que aquilo lhe matasse por dentro, teria sido uma carga menor que vê-lo dependente do álcool, herança das noitadas com os amigos em bares e cabarés.

Muitos anos se passaram desde então. Muitas dificuldades enfrentadas, mas com seis filhos, nunca mais ousou amar novamente. O tempo transformou sua carne frágil em armadura, fechou seu coração para outras ilusões e encarou batalhas que a grande maioria das mulheres de hoje, seriam incapazes de enfrentar sozinhas. Ela é minha heroína preferida. Meu ídolo na terra. Suas histórias me inspiram e sinto o amor de filha brotar cada vez mais intenso quando sento para ouvi-las.

A garganta se aperta, sinto o peito acelerar com o intenso desejo de que ela pudesse ter sido feliz de verdade um dia. Ela merecia ter sido amada. Mas a vida é irônica mesmo. O afeto de um homem escolhido, não foi o bastante para apresenta-la a felicidade, mas, os filhos, deram a ela todas as alegrias esperadas. Ela sabe o quanto é amada hoje, e que nunca mais estará sozinha. Sabe o quanto é admirada e respeitada, e ainda que seu coração se entristeça e seus olhos denunciem sua dor pelo amor que estava morto ainda em vida, hoje ela sabe que valeu a pena resistir às lutas que travou em seu caminho. O sentimento dos “homens” pode ser frágil, inconstante, até burro, mas amor de filho quando reconhece a graça de ter os pais que tem, é igual ao amor de mãe. É incondicional... É para sempre.

Texto BASEADO em fatos reais.
¹. Torreão é o nome do lugar onde minha personagem viveu os primeiros anos de casada. Foi lá onde a história teve início.
“Torreão é uma serra situada no município de João Câmara, a 80 km da capital (Natal/ RN) e pertencente à região do Mato Grande, a serra do Torreão é a sentinela mais avançada do grande planalto da Borborema, no sentido norte-oriental. É um iceberg solitário (...)”
Fonte: http://www.cmjoaocamara.rn.gov.br/historia_serra_do_torreao.php)

Gil Façanha-Sou mais do que se pode ver e escrevo pra que as emoções não transbordem de minha alma e se percam nos canteiros da memória. Falo de dores e amores, pra que nada tenha a chance de tornar-se algum tormento. Exponho meus lamentos, grito minha saudade e tantos outros sentir. Falo bem dos sentimentos, mas nunca aprendi a falar muito bem sobre mim mesma. Mas eu não sou uma pessoa difícil de definir... Apenas não consto em nenhum dicionário.
Todos os direitos autorais reservados a autora.

13 comentários

Mirian Marclay disse...

Minha linda e talentosa amiga, nobre poetisa, nobre escritora, neste dia do escritor venho, com o coração nas mãos, e os olhos vertendo água, dizer-te que esta história da sua mainha,  de sua mãezinha, tocou minha alma  além do que imaginas.

Nossas vidas em partes foram semelhantes, e nossas íntimas reflexões, angústias e experiências em parte se assemelham. Mas isso contarei mais para ti um dia.

Quanto a tua estrutura da narrativa, tua escrita é perfeita! E o conteúdo é  um rasgo de alma!

Nós, como leitores,  não conseguimos deixar de ler-te, a maneira como tu decantou do sofrimento familiar a essência da bondade da alma de sua mãe, nos inspira a sermos seres melhores, a refletirmos mais sobre nós.

Nós nos inspiramos nessas mulheres, que não são de Esparta, são do nosso sertão, e bordam, no nosso coração o verdadeiro significado da palavra AMOR.

Gil Façanha disse...

Obrigada pela leitura, e por tão lindo comentário, poetisa Mirian. Que bom que alcancei meu objetivo. Vejo isso em tuas palavras. Meu abraço e feliz dia do escritor.

Anônimo disse...

Maravilhoso Gil minha querida,emocionou-me deveras!Esse conto tem folhas que são da minha vida.
Grande luz,grande talento você tem de relatar com graça e sutileza os sentimentos do personagem!Orgulho de você querida!Parabéns!

Delmo Fonseca disse...

Difícil é ler uma crônica ou um conto de Gil Façanha e não se flagrar refletindo a respeito da vida e suas circunstâncias fugidias. Digo isso porque ao ler esse texto pude pensar como a vida não é justa, aliás, a vida não segue os nossos parâmetros de justiça. A vida simplesmente é. E o amor como condição para a "existência" da vida também simplesmente é. Muitos passam pela vida sem experimentar ou mergulhar nas águas do amor erótico, o que não quer dizer amor pornográfico, mas o amor de um homem por uma mulher e vice-versa, amor de pele, amor químico, embora fluídico.
Gil narra a história de uma personagem que por força da circunstância vislumbrou esse amor, mas por pouco tempo. Restou a memória afetiva, sobrou desejo, faltou oportunidade. Assim é a vida.

Delmo Fonseca disse...

Difícil é ler uma crônica ou um conto de Gil Façanha e não se flagrar refletindo a respeito da vida e suas circunstâncias fugidias. Digo isso porque ao ler esse texto pude pensar como a vida não é justa, aliás, a vida não segue os nossos parâmetros de justiça. A vida simplesmente é. E o amor como condição para a "existência" da vida também simplesmente é. Muitos passam pela vida sem experimentar ou mergulhar nas águas do amor erótico, o que não quer dizer amor pornográfico, mas o amor de um homem por uma mulher e vice-versa, amor de pele, amor químico, embora fluídico.
Gil narra a história de uma personagem que por força da circunstância vislumbrou esse amor, mas por pouco tempo. Restou a memória afetiva, sobrou desejo, faltou oportunidade. Assim é a vida.

Gil Façanha disse...

Encantada com os comentários de todos. Gratificante mesmo, ver como a escrita tem o poder de unir histórias, de unir vidas tão separadas, de tocar almas. Muito obrigada pelo tempo dispensado a este texto, e pelos comentários. Meu abraço a todos.

Gil Façanha disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
EDVÂNIA RAMOS disse...

Meu anjo você é show,parabéns que você seja assim sempre.

EDVÂNIA RAMOS disse...

Meu anjo vc é show,parabéns pela maravilhosa escritora que vc é,bjs te adoro e admiro muito.

Um olhar para o mundo disse...

A vida de cada pessoa é sempre um universo ímpar, nem todas são admiráveis, algumas são especiais, exemplos de vida e coragem, mas certamente todas dariam livros, entretanto quando temos tão próximos a nós um exemplo tão forte de coragem, de força e de bondade resignada, nos transformamos em pessoas especiais, a exemplo daqueles nossos tão queridos, tão amados. Não é a mesma história, mas certamente reconheci na tua, o amor que a minha mãe presenteou ao pai que amei, mas que certamente não mereceu a mulher que teve por esposa e mãe de seus filhos, uma mulher cuja vida foi encerrada cedo demais, que não teve o devido reconhecimento de todos que deveriam, que teve apenas dois filhos que sozinhos não puderam lhe preencher o amor, que não morreu ao seu lado, que não viveu os últimos trinta e cinco anos a seu lado e que um ano antes ela acompanhou até ao túmulo antes de ela mesma ser deitada a seu lado um ano depois.
Parabéns pela mãe maravilhosa que voce tem e te peço que a ame ainda mais, pelo amor que hoje não posso mais dar a minha. Ela fez de ti uma mulher admirável que aprendi a amar como a uma irmã que nunca tive.

Gil Façanha disse...

Muito obrigada Edvania, Claudia e Denise e todos que passaram por aqui me dando a honra da leitura. Repito que é sempre muito graticante tocar almas como as de vocês. Abraços em todos.

Anônimo disse...

Como presenteada, me posiciono como se o texto houvesse sido dedicado a mim e, consigo sentir que minha vida de mulher, de guerreira, de labutação, de doação, de dor e de conquistadora do amor aos que me dedico deixa em mim a marca eterna da preciosidade de ver a força da vida tomar fortes rumos inimagináveis, repentinamente e ao mesmo tempo sem a nossa pressa. Isso tudo, e a medida de tão pouco perto do que realmente foi, como numa tira de um filme de segundos, não é só biografia, é poesia, das mais eternas, na qual “[...] somente a candura de uma criança“ (ou de uma leitora) “não suspeitaria dos riscos [...]”.
Não há quem diga que ame de verdade até que perceba que deve haver medo.
Obrigada.
Bjs

Gil Façanha disse...

Agradeço a quem deixou esse último comentário! Me tocou. Foi como se minha própria mãe tivesse escrito isso. Se eu não tivesse a certeza de que ela não leu esse texto aqui, posto que li antes para ela, para receber seu aval, eu com certeza diria que foi ela... Mas não foi. Então, aceito como um carinho, saber que meu texto, que é parte da história da vida daquela que tanto amo, pode tocar também a tua alma. Meu abraço de agradecimento pela leitura e pelo comentário.