Einstein, Freud, a guerra, a culpa e o terapeuta
Einstein com Cord
Meyer, Jr., presidente da United World Federalists
"Esta foto toca-me realmente: Einstein e o seu
terapeuta. Tem qualquer coisa a ver com a tristeza nos seus olhos."
A foto foi tirada por Alfred Eisenstaedt para a Life
Magazine em 1948, na própria casa de Albert Einstein em Princeton. O convidado
do físico é o ex-agente da CIA Cord Meyer Jr., um homem a quem a Segunda Guerra
Mundial tornara um acérrimo defensor de um governo mundial para preservar a paz.
E aqui está o falso terapeuta em conversa com o grande
físico, na qualidade de presidente da organização que ajudara a financiar, a
United World Federalists.
Chegou a altura de contar a história toda como deve
ser, não é?
Federalistas, unidos, jamais serão vencidos?
A United World Federalists surgiu, em parte, como
resposta ao estrondoso fracasso da Liga das Nações, fundada entre os escombros
da Primeira Guerra Mundial pelas potências vencedoras e incapaz de fazer
cumprir o principal objetivo a que se propunha através do Tratado de Versalhes:
preservar a paz.
Esta era uma das faces do tratado. A outra humilhou a
Alemanha.
O Tratado de Versalhes foi também o documento que
responsabilizou os alemães pela guerra, forçando-os a aceitar a perda de partes
do território para França, Dinamarca e Polónia, entre outras nações, a
independência da Áustria e o pagamento de enorme indemnizações pelos prejuízos
causados durante a guerra.
E foram estas duras condições impostas pelos países
vencedores que sufocaram economicamente uma nação já derrotada, revoltando o
povo, abrindo caminho à ascensão de um justiceiro como Hitler, ao poder nazi e
a uma nova guerra à escala planetária.
A 21 de junho de 1940, senhores de Polónia, Noruega,
Dinamarca, Holanda, Bélgica e França, os nazis apresentaram aos franceses os
termos do armistício na mesma carruagem onde os alemães tinham assinado a sua
rendição no final da Primeira Guerra.
Adolfo Hitler, com tanto de louco como de prima-dona
operática, entrou na carruagem sem dizer palavra, supervisionando as
negociações com rigidez de granito, descendo depois da carruagem quando o
representante francês se rendeu em definitivo, para ser filmado pela propaganda
nazi com um pé nos degraus e outro na eternidade, o peito cheio de oxigénio
divino.
60 milhões de mortos depois, Hitler suicidara-se com um
tiro na corneta, os nazis tinham sido derrotados, a Alemanha dividida em duas,
duas grandes potências vencedoras erguidas sobre a Europa, a Europa entalada
entre Estados Unidos e União Soviética, os novos senhores de um mundo que
voltava a pensar como haveria de preservar a paz.
A Liga das Nações dissolveu-se a 20 de abril de 1946,
passando a responsabilidade à recém-formada Organização das Nações Unidas, com
sede em Nova Iorque. A Europa, envelhecida, mantinha-se o campo de batalha de
um novo tipo de guerra – a guerra não declarada.
A guerra podia ser ilegal, Professor Einstein
A organização de Cord Meyer Jr., que era filho de um
diplomata, tinha propósitos bem definidos: a paz seria alcançada através do
desarmamento universal imposto por lei; todos os recursos usados no fabrico de
armas seriam usados em benefício das necessidades de todos os seres humanos; a
organização comprometia-se a apoiar e promover a causa da liberdade e todas as
instituições que a defendessem; por fim, garantia o direito de todos os povos
se desenvolverem segundo os seus próprios costumes e tradições.
E era o presidente desta ambiciosa, efémera e quimérica
organização que se sentava junto do grande físico, enquanto Eisenstaedt, um
ícone do fotojornalismo, clicava no botão do obturador.
Segundo a Life, Einstein e Cord Meyer Jr. especulavam
sobre qual seria a atitude da União Soviética perante esta ideia de um governo
mundial.
É possível que os russos não apreciassem muito a
iniciativa, sobretudo porque dois requisitos fundamentais para um cidadão
americano se tornar membro da United World Federalists era não ter orientações
comunistas ou fascistas. Bastava que uma hipotética congénere soviética
impusesse as mesmas restrições ideológicas a capitalistas para que 99,9 por
cento do mundo ficasse de fora do acordo mundial de paz.
Eisenstaedt parece ter captado tristeza nos olhos de
Einstein, é verdade. Talvez fosse resignação ou cansaço do grande físico, por
ter concluído que os pressupostos da organização de Cord Meyer fomentavam a
divisão, colocando ela própria um obstáculo intransponível no caminho de paz
que pretendia trilhar.
Se é mesmo tristeza, não é provocada pelos problemas
pessoais que levam as pessoas ao gabinete dos psicólogos, mas por sentir sobre
os ombros o peso de um mundo carcomido pela guerra. Talvez do próprio mundo.
Uma carta, duas bombas, milhares de mortos
2 de Agosto de 1939. O presidente dos Estados Unidos,
Franklin Roosevelt, recebe uma carta de Albert Einstein. Grande parte da
missiva foi escrita pelo físico húngaro Leo Szilard, mas era ele quem dava a
cara pelo que lá estava escrito.
Roosevelt não teria considerado prioritário ler uma
carta enviada por um físico politicamente anónimo como Szilard, mas Einstein,
judeu, alemão, cuja foto aparecera numa revista nazi como parte de uma lista de
inimigos «por enforcar», estava refugiado nos Estados Unidos desde 1933,
tornara-se cidadão americano dois anos depois e era recebido em todo o lado
como se fosse uma celebridade de Hollywood.
E o que Einstein tem a dizer, percebe Roosevelt, é
demasiado importante: os alemães podem estar prestes a construir uma nova
bomba, temível e arrasadora.
"Alguns
trabalhos recentes de E. Fermi e L. Szilard (…) levaram-me a crer que o
elemento urânio pode ser transformado numa nova e importante fonte de energia
num futuro próximo. Certos aspetos da situação que se criou exigem atenção e,
se necessário, rápida ação por parte da Administração. Creio, por isso, ser meu
dever trazer à sua atenção para os seguintes factos e recomendações:
No decorrer
dos últimos quatro meses, foi provado – através do trabalho de Joliot na
França, bem como de Fermi e Szilard na América – ser possível a criação de uma
reação nuclear em cadeia numa grande massa de urânio, através da qual vastas
quantidades de energia e grandes quantidades de novos elementos semelhantes ao
rádio são gerados. (…)
Esse novo
fenómeno poderá levar também à construção de bombas, sendo concebível que
bombas extremamente poderosas de um novo tipo possam ser construídas. Uma única
bomba deste tipo, carregada por um barco e explodida num porto, pode muito bem
destruir todo o porto, juntamente com parte do território circundante. Contudo,
tal bomba pode muito bem revelar-se demasiado pesada para o transporte por via
aérea.
(…) Perante a
situação, é desejável ter mais contacto permanente entre a Administração e o
grupo de físicos que trabalha em reações em cadeia nos Estados Unidos. Uma
forma possível de alcançar este objetivo poderia ser a de o senhor confiar tal
tarefa a alguém de sua confiança que poderia, talvez, atuar numa condição
extra-oficial. Esta tarefa pode compreender:
a) manter os
Departamentos Governamentais informados sobre o desenvolvimento e apresentar
recomendações para a ação do Governo, dando especial atenção ao problema de
garantir fornecimento de minério de urânio para os Estados Unidos;
b) acelerar o
trabalho experimental, feito atualmente dentro dos limites dos orçamentos dos
laboratórios das universidades, fornecendo fundos, caso sejam necessários,
através do contacto com pessoas privadas dispostas a contribuir para esta
causa, procurando mesmo a cooperação de laboratórios industriais que possuem o
equipamento necessário.
Entendo que a
Alemanha cessou a venda de urânio das minas da Checoslováquia. Talvez se
compreenda por que razão o fez, se tiver em conta que o filho do sub-Secretário
de Estado Alemão, von Weizsäcker, está ligado ao Instituto Kaiser-Wilhelm, em
Berlim, onde alguns dos trabalhos americanos sobre o urânio estão agora a ser
repetidos.
Durante toda a vida Einstein carregou o peso desta
culpa: o fabrico da bomba atómica e os milhares de mortos que originou em duas
cidades japonesas. Mas a culpa de Einstein, por comparação com a do físico Otto
Hahn, era tão leve como a carta que enviara.
Quando o homem que efetivamente descobriu o processo de
cisão que esteve na base do fabrico da bomba soube que tinham morrido cem mil
pessoas em Hiroxima, sentiu-se tão desesperado que teve de ser vigiado pelos
colegas, receosos de que tentasse o suicídio. Na verdade, de uma forma ou de
outra, muitos dos físicos envolvidos no Projeto Manhattan acabariam por
experimentar – e expiar – essa sensação de culpa. Sobre este assunto – a bomba
atómica e a culpa dos cientistas – podem ler um excelente artigo do físico
Carlos Fiolhais no blogue De Rerum Natura.
Ainda assim, ciente da importância que o seu nome
tivera para convencer Roosevelt, Einstein nunca se poupou: «Fui eu que
carreguei no botão», chegou a dizer.
O terapeuta na vida de Einstein
Soak, 2004, do japonês Hideaki Kawashima para a
exposição «Little Boy»
Apesar dos óbvios falhanços da Liga das Nações em
impedir que nações se tentassem aniquilar umas às outras, algumas iniciativas
interessantes foram organizadas – e uma delas haveria de ligar, para a
posteridade, as vidas de dois gigantes: o médico neurologista Sigmund Freud,
pai da psicanálise, e o próprio Einstein.
Em 1931, dois anos antes de os nazis chegarem ao poder,
Einstein recebeu em Berlim um convite para participar numa iniciativa do
Instituto Internacional para a Cooperação Intelectual, em nome do Comité
Permanente para a Literatura e as Artes da Liga das Nações: trocas de
correspondência entre intelectuais de renome sobre assuntos que pudessem servir
os interesses comuns das nações.
Einstein sugeriu o nome de Freud e o médico, contactado
pelo Instituto, concordou.
Em setembro de 1932, Einstein escreveu uma carta em que
formulou a Freud o seguinte problema: «Existe alguma forma de livrar a
humanidade da ameaça de guerra?»
A carta de Einstein chegou no início de agosto desse
ano e Freud demorou um mês a responder. A correspondência acabaria por ser
publicada em Paris em 1933, mas a sua circulação foi proibida na Alemanha pelos
nazis recém-chegados ao poder. Por esta altura, já Einstein fugira do país e se
refugiara nos Estados Unidos.
Para Freud, a discussão com Einstein foi enfadonha e
estéril.
Freud já conhecia Einstein – encontraram-se em
princípios de 1927, em Berlim, na casa do filho mais novo do médico – e o
teórico da psicanálise comentou o encontro nos seguintes termos:
"Ele entende
tanto de psicologia como eu de física, de modo que tivemos uma conversa muito
agradável."
Em 1936, voltaram a corresponder-se e as mensagens
foram muito mais simpáticas. Einstein louvou-o por ter verificado que a teoria
da repressão de Freud era a única interpretação para «certas coisas que tinha
ouvido» e mostrou-se satisfeito por «uma grande e bela conceção ter provado
estar em harmonia com as coisas da realidade».
Freud respondeu-lhe em frases cheias de sorrisos,
mostrando-se «muito satisfeito pela alteração – ou início da alteração, pelo
menos – do seu julgamento sobre as minhas doutrinas».
Quatro anos antes desta troca de salamaleques, na carta
em que Einstein pergunta a Freud como pode a Humanidade livrar-se da guerra, o
físico diagnosticou tão bem as raízes do problema que retirou ao psicólogo
qualquer hipótese de dizer muito mais. Como o próprio afirmou, na sua resposta,
"você disse
quase tudo o que há a dizer sobre o assunto. Embora se tenha antecipado a mim,
ficarei satisfeito em seguir o seu rasto e contentar-me-ei em confirmar tudo o
que já disse, ampliando-o com o melhor do meu conhecimento — ou das minhas
conjeturas."
Mas Freud insistiu na ideia de uma autoridade central –
tal como Einstein, de resto – e na clara perceção das falhas da Liga das
Nações, conclusões que o presidente da United World Federalists já devia
conhecer quando se reuniu para conversar com o físico para a reportagem da
Life:
"Se nos voltamos para os nossos próprios tempos,
chegamos à mesma conclusão a que o senhor chegou por um caminho mais curto.
As guerras apenas serão evitadas se a humanidade se
unir para estabelecer uma autoridade central a que será conferido o direito de
arbitrar todos os conflitos de interesses.
Nisto estão envolvidos claramente dois requisitos
distintos: criar uma instância suprema e dotá-la do necessário poder. Uma sem a
outra seria inútil.
A Liga das Nações está destinada a ser uma instância
dessa espécie, mas a segunda condição não foi preenchida: a Liga das Nações não
possui poder próprio, e só pode adquiri-lo se os membros da nova união, os
diferentes estados, se dispuserem a cedê-lo. E, no momento, parecem escassas as
perspetivas nesse sentido."
Freud, contudo, sugeriu algumas pistas preciosas:
"De nada vale
tentar eliminar as inclinações agressivas dos homens.
Segundo se
conta, em determinadas regiões privilegiadas da Terra, onde a natureza provê em
abundância tudo o que é necessário ao homem, existem povos cuja vida transcorre
em tranquilidade, povos que não conhecem nem a coerção nem a agressão.
Dificilmente posso acreditar nisso, e agradar-me-ia saber mais a respeito de
coisas tão afortunadas.
Também os
bolchevistas esperam ser capazes de fazer a agressividade humana desaparecer
mediante a garantia de satisfação de todas as necessidades materiais e o
estabelecimento da igualdade, em outros aspetos, entre todos os membros da
comunidade.
Isto, na
minha opinião, é uma ilusão. Eles próprios, hoje em dia, estão armados da
maneira mais cautelosa, e o método não menos importante que empregam para
manter juntos os seus adeptos é o ódio contra qualquer pessoa além das suas
fronteiras. Em todo o caso, como observou, não há maneira de eliminar
totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se tentar desviá-los num grau
tal que não necessitem encontrar expressão na guerra.
A nossa
teoria mitológica dos instintos facilita-nos encontrar a fórmula para métodos
indiretos de combater a guerra. Se o desejo de aderir à guerra é um efeito do
instinto destrutivo, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe o seu
antagonista, Eros.
Tudo o que
favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre os homens deve atuar
contra a guerra. Esses vínculos podem ser de dois tipos.
Em primeiro
lugar, podem ser relações semelhantes àquelas relativas a um objeto amado,
embora não tenham uma finalidade sexual. A psicanálise não tem razões para se
envergonhar se nesse ponto fala de amor, pois a própria religião emprega as
mesmas palavras: ‘Ama a teu próximo como a ti mesmo.’ Isto, todavia, é mais
facilmente dito do que praticado.
O segundo
vínculo emocional é o que utiliza a identificação. Tudo o que leva os homens a
compartilhar de interesses importantes produz essa comunhão de sentimento,
essas identificações. E a estrutura da sociedade humana baseia-se nelas, em
grande escala.
A guerra já
não é mais uma oportunidade de atingir os velhos ideais de heroísmo, e a de
que, devido ao aperfeiçoamento dos instrumentos de destruição, uma guerra
futura poderia envolver o extermínio de um dos antagonistas ou, quem sabe, de
ambos.
Tudo isso é
verdadeiro, e tão incontestavelmente verdadeiro, que não se pode senão sentir
perplexidade ante o facto de a guerra ainda não ter sido unanimemente
repudiada."
É a carta de Einstein – e a longa resposta de Freud –
que vos deixo para imprimir e ler nos tempos livres, se o desejarem. Vale a
pena. Mais de 80 anos depois, o diagnóstico de Einstein e as questões
levantadas por Freud permanecem atuais. É um problema para centenas, milhares
de anos, a resolver por longínquos descendentes que nunca poderão ser como nós.
Às vezes mil palavras valem mais do que uma foto
A fotografia no topo deste post – Einstein e o seu
falso terapeuta – deu azo a interpretações completamente erradas sobre a
identidade de Cord Meyer Jr. e as razões da conversa com o físico. Basta
procurar a imagem no Google e ver-se-á como é tão frequente as pessoas terem
mais fé em legendas ou títulos enganadores do que na verdade dos factos.
Este não é um caso único. Ao longo destes anos de
blogue, tenho apanhado vários. Eis alguns exemplos:
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