Sobre
o tempo
Outro dia, um primo meu me perguntou
o que eu achava do nosso tempo. Não lhe ocultei o prazer de responder que o
amava e agradecia ao Criador por me permitir usufruí-lo, por pouco que sejam os
meus artefatos, e tanto o desejo de obtê-los mais. O meu primo, que conserva
alguns resquícios de anacronismo, como o não sem pedantismo prazer de se
auto-dominar anárquico, espantou-se com a outra tangente assumida por mim, que
é de lembrar-me com prazer do tempo passado, mas sem saudosismo, porque a Roda
da Fortuna anda, e, justamente por estabelecer uma conexão clara entre passado
e presente, é que sou taxativo, e reafirmo o meu tempo como o melhor de todos.
Tenho na mente, agora, dois momentos:
noite de caatinga e luar, com o meu avô Ioiô entronizado na roda do terreiro,
tendo em volta filhos e netos, esse avô tão fiel a Deus em sua fé, que, mesmo
não tendo provas de ter saído das tribos eleitas, nem por isso deixou de pagar
o devido tributo a Israel, contribuindo para semear na Terra filhos de filhos
de filhos... Meu avô Ioiô foi o meu primeiro contador de histórias. De todos
nós. Eram tantos os ouvintes, que, acredito, o mais atento fui eu. As histórias
do avô eram solenes, belas e terríveis. Histórias de lutas e mortes, de finados
e almas penadas, de batismos de crianças pagãs chorando sobre o frio da
caatinga em noite de junho, da meninice dele lá onde ele nasceu, a terra de
Anísio Teixeira... Eu me fazia leitor.
Em casa, eu tinha dois narradores. O
meu pai, eloquente como ele, sempre atento às novidades, lendo sobre os feitos
do homem e tentando imitá-los. Era capaz de criar um revólver na Tenda, que era
como conhecíamos a oficina de ferreiro de nosso avô Ioiô, ele e meu pai sempre
juntos, criando pecinhas que vendiam ou presenteavam aos amigos, tantos. Era o
meu Macondo. Meu avô fabricou de pensamento um fogo de artifício para um de
nossos São João. Ninguém sabe como foi isso, mas, numa noite de São João, um
céu chinês salpicou o nosso de amarelo, azul, vermelho, roxo, uma chuva que se
dissolveu nas estrelas, para espanto e alegria de todos nós. A experiência não
se repetiu. Assim fui me fazendo leitor.
Minha mãe me contava histórias. Eram
histórias de sua família, dos irmãos dela, de sua infância de menina pirracenta
nas brincadeiras dela. Eu adorava ouvi-la. Um dia, meu pai nos pôs, a mim e a
meus irmãos, numa carroça, e fomos, ele, minha mãe e nós, por um caminho seco,
ladeado de flores amarelas. O tempo das águas já tinha passado. Chegamos do
outro lado, à terra de minha mãe. Eu vi. A casa, a cerca de mourão, todo tipo
de animal e ave. Tinha sido a primeira vez que vi aquelas aves pintadinhas que
passavam uma atrás da outra, cantando a saudade
da terra delas. Minha avó Mãe Iaiá era diferente de tudo o que tinha
visto. Era uma senhora pequena, branca, de pequenos olhos azuis. E era muito
séria comigo. Ela que me explicou que as galinhas de Angola vieram com os
negros. Minha ama de leite me deu uma cabaça linda, muito comprida e polida, em
Macondo. Foi ela que trouxe as galinhas de Angola? Avó Mãe Iaiá não respondia,
calada. Eu me tornava leitor.
Em Macondo, os meus primos tentaram
me ensinar a falar “quatro”. Eu não conseguia. Eu brincava de pensar. Uma tarde, o nome veio, e eu falei
quatro e fiquei unido ao mundo. Era a alegria. A terra de minha avó Mãe Iaiá
era boa. Tinha comida boa a toda hora. Requeijão, coalhada, bolo e doces. Meus
tios falavam e brincavam de outro jeito que não aprendi, muito parecido com o
de minha mãe. Nem sei. Minha mãe era diferente, ali. Tinha os seus momentos de
alegria, de brincar e de pirraçar, mas não podia ver ninguém sofrendo. Chorava.
Eu gostava de ir lá, era conhecer a diferença. A gente percebia a alegria de
ser primo dos primos. A terra era boa, mais farta e mais vasta do que o Macondo
de meu avô Ioiô. Era mais rica.
Mas lá não tinha cinema. Nem circo.
Nem padre italiano. Nem histórias em noites de terreiro. Macondo era o meu
mundo. Doía. O mundo de minha mãe não era o meu. E eu amava minha mãe. Tinha dia
que ela se espantava. “Você é neto de Iaiá” (era a minha avó de Macondo, mãe de
meu pai). “Tem o mesmo calundu de índio.” Minha mãe contava, então, a linda
história de uma índia caçada no mato com cachorros e espingarda por um
português muito alto. Era o avô de minha avó Iaiá.
Um dia, nós pegamos um tapete voador e chegamos aqui. Estou escrevendo esses
meus pensamentos num pequeno notebook. Meu avô, meu pai, eles já se foram. Mas
este é o tempo deles. Foi assim que me tornei em leitor.
Milton
de Oliveira Cardoso Junior, baiano da Chapada Diamantina, é graduado em Letras,
Língua Portuguesa e Suas Literaturas pela Universidade do Estado da Bahia,
Uneb, Campus XVI, Irecê, Bahia. Surdo desde os dez anos, em consequência de
meningite, tem dificuldade em aprender Libras, talvez pelo fato de ter começado
a ler muito cedo. Entre os seus escritores preferidos, encontram-se Thomas Mann
e Guimarães Rosa.
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Um comentário
Que bela prosa! Também sinto que o tempo presente é o melhor tempo, as recordações trazem saudades mas temos que viver o presente. Parabéns pela narrativa.
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