Sobre
pães e leite
por Cinthia Kriemler
Abro a gaveta pela terceira vez. E a fecho novamente.
Faz dias que reluto entre o apelo do papel e o temor de não produzir mais nada.
Essa mania de escrever à mão não combina com a tendinite que me ataca os pulsos
há mais de um ano, mas não consigo me divorciar de uma boa caneta. Hoje, no
entanto, reconheço a minha tentação em trocar o cilindro fino pelo teclado do
notebook de última geração que está sobre a escrivaninha. Bicho caprichoso.
Deixa a gente preguiçoso, mal-acostumado. Faz tudo parecer tão fácil que a
gente se esquece de quem manda em quem.
— Pai, você está trabalhando? — a voz de meu filho me
distrai.
— Não, Bernardo. Estou à toa.
— Jura? Você vive tão ocupado... Não quero atrapalhar.
Uma ironia. Mais uma. Vou fazer de conta que é apenas
uma frase casual. As discussões são sempre desgastantes.
— Você quer falar comigo? — acelero a conversa que nem
ele nem eu queremos ter de verdade.
— Empresta o carro?
Ah, o carro! Algum dia ainda vou escrever um tratado
sobre a relação entre o carro e a estabilidade das relações familiares. Vai ser
muito útil aos pais de primeira viagem. Viram como foi a abordagem? Primeiro,
uma preocupação fingida. Depois, uma ironia disfarçada em educação e....pimba!
Lá vem o pedido. Mas eu não quero briga. Se não acabo me desconcentrando de vez
e não escrevo nada.
— Tudo bem, mas cuidado. Olha onde estaciona, hein? —
repito a ladainha de sempre.
— Falou, pai, não estressa!
Assim que ele sai, me decido definitivamente pela
tecnologia. Vamos ver... Apertei o botão lateral... A tela apareceu... Pronto.
Agora só falta abrir um arquivo novo e...
— Seu João, tem que comprar pão e leite, e a dona Celi
ainda não chegou pra me dar o dinheiro.
Da porta, nossa ajudante do lar, Cidinha, me olha com
cara de paisagem. Ah, o pão nosso de cada dia! E o leite.
— Tome, Cidinha — estico uma nota de cinquenta reais. —
Dá pra comprar leite, pão e presunto. E traz o troco.
Bom, agora somos só nós dois, notebook. Você, me
atraindo com essas facilidades todas e eu resistindo, resistindo porque... Por
que é mesmo que eu resisto? Uma página em branco é uma página em branco, ora
bolas. E ainda tem mais: eu posso errar as letras e arrumar na mesma hora, sem
rasurar; posso descartar frases inteiras, trocar parágrafos de lugar, mudar dez
vezes o título. Tudo isso sem bagunçar o texto. É só clicar, copiar, recortar,
colar, deletar, inserir....Hum...Sou obrigado a reconhecer que o tablete de aço
tem muitas vantagens.
Ok. Abrir documento em branco. Enter. Enter. Agora, o título... Sobre o que é mesmo que eu vou escrever...?
Eu tinha umas ideias que queria desenvolver: agressões ao meio ambiente,
economia mundial, mas tudo isso agora está me parecendo meio pretensioso. Vamos
lá, cara, você precisa escrever sobre alguma coisa interessante. Impactante. Um
texto que fale de rupturas, de quebras... Despedida.
Isso! O título está ótimo. Preciso decidir agora se vou falar de uma separação,
de uma morte, de um abandono...
— D. Celi está demorando, né?
Cidinha ainda não saiu. Está bem aqui, na minha frente.
Ignora meu silêncio gelado.
— Por que será? — ela continua, sem ligar para mim
— D. Celi nunca atrasa. Coisa esquisita,
né, seu João?
Não resisto e respondo.
— Não tem nada de esquisito, Cidinha. Vai ver foi ao
cabeleireiro, ou foi ao cinema com a irmã. Se alguma coisa ruim tivesse
acontecido, alguém já tinha ligado — tento cortar o resto da tragédia
anunciada.
— É... Notícia ruim tem perna curta, né, seu João?
O olhar que lhe dirijo impediria uma centena de
criaturas de continuar falando. Mas não Cidinha. Porque Cidinha não tem freio.
— Quando eu voltar é pra servir logo o lanche ou é pra
esperar a D. Celi? — ela muda de assunto.
Louca. Sem noção. Boquirrota (alguém ainda fala isso?).
Chata.
— Pode pôr a mesa, Cidinha. Do jeito que a Celi manda
fazer todos os dias — tento me livrar dela de uma vez.
— Tá. Mas o senhor não vai esperar nem os meninos que
foram para a academia?
Então foi para isso que o Bernardo me pediu o carro.
Para fingir que faz musculação enquanto paquera as amigas da irmã. A desculpa é
sempre a mesma, de que os dois malham no mesmo lugar e que indo de carro ele
pode dar carona para ela. Fazer o quê. Minha filha ainda é menor de idade e se
não for de carona com o irmão acaba sobrando para mim. Nós temos dois carros,
mas os horários da Celi nunca combinam com os dos meninos. Cabeleireiro, clube,
shopping. Ê, vida boa! De vez em quando uma compra para a casa. Pensando bem,
Bernardo é uma mão na roda.
Finalmente, Cidinha foi comprar o bendito pão. Fecho a
porta e volto ao meu texto. Que ainda não é um texto. Escrevo algumas bobagens
sem nexo, mesmo sabendo que vou jogar quase tudo fora.
— Seu João! Ô, seu João! O senhor tá me ouvindo? Seu
troco tá aqui, ó!
Como assim? A maluca já voltou da rua?
— Deixe aí na cozinha mesmo. Obrigado.
Meu tom de voz diz tudo o que a educação não permite.
— Comprei tudo, viu? — os gritos continuam. — Pão,
leite, presunto. E comprei um bolo de cenoura com calda de chocolate que a dona
Celi sempre manda comprar quando tem, porque os meninos adoram. E não é caro,
não. O dinheiro dava. E estava fresquinho.
Calado. Se eu ficar calado será que ela vai embora?
— E o senhor, vai comer agora?
Comer. Essa é a última das minhas necessidades. A
primeira é fazer você calar a boca, Cidinha. Espera aí... Esse barulho é das
chaves de Celi na porta.
— João? Boa noite, amor, tudo bom? — ela diz, entrando
no quarto-escritório.
Mas antes que eu possa responder, ela se volta para a
tagarela.
— Por que é que a mesa de lanche ainda está pela
metade, Cidinha?
— Pois num é, dona Celi! Eu estava acabando de pedir
instrução pro seu João, né mesmo seu João? Não tinha dinheiro pro pão e leite e
aí eu tive que pedir dinheiro pra ele, viu? É que eu assustei que a senhora num
chegava e vim trocar uma ideia aqui com o seu João...
— Cidinha — interrompo,
com medo de um repeteco — Nós vamos lanchar agora.
Pelo olhar indagativo de Celi, vejo que ela não está
entendendo o que se passa entre mim e a faladeira. Mas por pouco tempo. Não é
com isso que ela está preocupada.
— João, você nem sabe que sorte a minha. Deixa eu te
contar. Eu sempre deixo dinheiro para a Cidinha comprar pão e leite, não é?
Ah, não, lá vem o pão e o leite outra vez!
— Pois hoje eu esqueci de deixar e só lembrei no meio
do filme que eu fui ver com a Cassandra.
Irmãs inseparáveis essas duas. Cassandra me livra de
muitos lugares chatos aos quais eu não quero ir. E me substitui com vantagem.
Filme, por exemplo, é uma coisa que eu só gosto de ver em casa.
— João, você está me escutando? — ela me repreende.
— Claro que sim! — minto, com cara de ofendido.
— Não dava para telefonar para casa porque meu celular
acabou a bateria antes de o filme começar. Eu não sabia se você estava em casa
para dar o dinheiro. E o celular da Cassandra também arriou a bateria.
Coincidência esquisita, não?
Mas o que é isso? Essa é mesmo a Celi ou a Cidinha
disfarçada?
— Aí, quando eu saí do cinema, vi que ainda dava tempo
de passar na padaria aqui do bairro.
É um roteiro, agora eu tenho certeza. Celi e Cidinha
estão escrevendo o argumento: Pão e leite.
— Mas aí eu vi que já estava meio tarde e que eu não ia
encontrar pão fresquinho na padaria. Então, eu decidi dar um pulo no
supermercado e comprar lá, porque fica aberto 24 horas.
Vamos ter uma multiplicação não-deificada de pães e
leites sobre a mesa de jantar: os pães de Celi, os pães de Cidinha. Pães, pães,
pães!
— Que sorte, viu, que sorte a minha, João! Quando eu
cheguei aqui na garagem, o porteiro da noite veio me contar que assaltaram a
padaria na hora de fechar, levaram dinheiro, mercadorias e ainda deram uns
tiros por lá. Parece que uma senhora foi ferida gravemente. Já pensou se eu
tivesse ido lá? Podia ser eu!
Meus pensamentos divertidos sumiram. A violência urbana
vitimou mais alguém. Uma manchete me vem à cabeça: “Mulher baleada em assalto à padaria”. O calafrio é inevitável.
Celi desaparece no corredor em busca de Cidinha. Meus
filhos chegam da academia, barulhentos, e param para ouvir da mãe a novidade da
noite. Triste novidade.
Antes de me sentar para o lanche, apago a primeira e
única linha abandonada na página, desistindo de escrever. Por hoje, chega de
histórias.
Cinthia Kriemler
- Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de
Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e
Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na
oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de
contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo
de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas
“Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma
de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da
Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há
mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
Um comentário
Cinthia, decididamente você esteve aqui em casa e me viu, tentando escrever e lidando com meu dia a dia. Você merece um prêmio, amiga!
Amei. Amei. Amei.
Postar um comentário